agosto 25, 2007

Aos poucos...

tejo / trancão

...foi retirando algumas palavras do seu vocabulário por inúteis que eram. Todas as conjugações dos verbos "amar" e "compartilhar" e alguns complementos directos e indirectos dos verbos "dar" e "receber" acabaram esquecidos nos fundos da memória e de tal forma, que se por acaso se cruzava com eles, escritos ou falados, ficava sem jeito, sem perceber o seu significado. Retirou também adjectivos como "querido", "amado", "adorado" e substantivos como "amor", "paixão" e "cumplicidade".

Despojou-se de todos os sentimentos mais profundos, com medo de ferir e de se ferir, guardando apenas aqueloutros mais leves que afloravam a pele somente de forma superficial, mas que davam à vida o colorido de que precisava: amizade, compaixão, solidariedade, polvilhados com um pouco de carinho e ternura.

Refugiou-se em si e nas suas coisas, livros, desenhos, fotografias, músicas, escritos. A vida corria rectilínea, partilhada mas não compartilhada, onde o afecto não se misturava com a paixão nem com a cumplicidade.

Um dia viu-se ao espelho e não se reconheceu, de tal forma a ausência das palavras perdidas tinha transformado por fora um ser que não se identificava com o que sentia dentro de si, vibrante de sensações, tremendo ao sabor de um cheiro, de um olhar cruzado na rua, de um toque de raspão. Percebeu como era estranha aquela forma de vida, sentidos embotados, aprisionados anos a fio no seu peito.

Com cuidado, procurou abrir-se para sensações há muito arrumadas e das quais prescindira. Encontrou pessoas que usavam com facilidade as palavras que tinha guardadas e que, com paixão, lhe pediram que as resgatasse. Durante algum tempo resistiu, continuando a utilizar aquelas a que se habituara: "gostar muito" em vez de "amar", "amizade" em vez de "amor", "partilhar" em vez de "compartilhar", até porque perdera o significado exacto das outras.

Numa tarde de ventos e chuva nas vidraças, acercou-se da estante, retirou o dicionário, limpou-lhe o pó, afagou-o com os dedos que tremiam, e procurou as palavras esquecidas. À medida que os seus olhos percorriam as páginas, a memória foi libertando todas as palavras que tinha lá bem no fundo.

Tentou primeiro dizê-las apenas para dentro, depois sussurrou-as e finalmente pronunciou-as em voz clara. Foi como se um raio de sol lhe entrasse no peito.

Gritou-as, cantou-as, chorou-as.

Desde então, não sabe passar um dia sem conjugar o verbo amar.

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