outubro 18, 2006

S. Martinho do Porto

O meu pai sentado num banquinho no cais, calções, camisa de mangas curtas, panamá, a cana de pesca na mão, ao lado um saco com linhas, anzóis, chumbos, carretos, tesouras enferrujadas e um cheiro peculiar que guardo na memória, eu de cócoras ao lado, não mexas aí que te picas, posso pôr o bicho na anzol, pai? e ele a explicar-me tudo com infinita paciência, a minhoca a enrolar-se nos meus dedos e eu já a não querer mexer naquilo mas sem dar o braço a torcer, ao fim do dia um balde com água do mar e dois, três peixinhos minúsculos lá dentro, explorando o balde em eternos círculos até que a maré virasse e regressassem às águas da baía.

Quando chegavam as traineiras amarelas “Apanha Submarina de Algas”, o ar enchia-se daquele cheiro a profundezas do mar, as algas castanhas a quererem escapar-se, os barcos só com uma bordinha de fora de tanto peso, os apanhadores ainda fardados de preto com as máscaras, as botijas, as barbatanas, todo o santo dia para cima e para baixo, para baixo e para cima a encherem as redes para serem içadas para a traineira, eu a vê-los descarregar aquela verdura toda no cais, interrogando-me como seria o fundo do mar, floresta imensa que nunca se esgotava, pois que todos os dias vinham sempre os mesmos mergulhadores, as mesmas traineiras a deitar por fora.

Na areia da baía as fiadas de barracas, lona de riscas coloridas, remendos equivocados, telhados em bico, senhoras compostas à sombra dos avançados, meninos a jogar ao prego, ao mata, ao ringue e à bola, à espera da digestão e do banho do meio-dia. Criadas fardadas a trazerem o almoço em cestos com panos brancos, a D. Natália com a caixa verde à cabeça e dentro da caixa fatias de pão-de-ló de Alfeizerão, e outra de que não me lembro o nome com uma caixa não verde mas vermelha, lá dentro bolacha americana, batatas fritas em saquinhos de plástico gordurosos, tremoços, amendoins e pevides, varizes nas pernas tisnadas do sol, cansadas de caminhar o areal vezes sem conta.

Nós do lado menos bem da praia, mas também não na ponta pior, digamos que a meio, pois embora as barracas fossem iguais, a areia a mesma e a água do mar igualmente barrenta, dum lado as pessoas tinham nomes muito compridos e alcunhas como Bibá, Bábá, Bébé, e do outro os nomes já só Manel e Zé e apelidos dois, no máximo três e isso, parecendo que não, fazia toda a diferença.

Pois nós do lado menos bem da praia, mas também não na ponta pior, digamos que a meio, a minha tia solteira que nunca usou calças nem fato de banho sentada no fundo da barraca com medo que lhe vissem as pernas do joelho para baixo, o meu avô de cabeleira branca, camisa e calças de linho a dormitar na cadeira, a minha mãe e a minha avó compostas à sombra do avançado, eu a fazer esculturas na areia e a vê-las desaparecer com a subida da maré, ao fim da tarde o meu pai de calções, camisa de mangas curtas e panamá, que nos vinha buscar depois de passar o dia sentado num banquinho do cais a coleccionar peixinhos minúsculos que exploravam o balde em eternos círculos até que ele os deitasse a mar.

outubro 12, 2006

Caetano

Fui ouvir o Caetano ao CCB, o vento enrodilhado nos cabelos da plateia, ombros de damas arrepiados, maridos solícitos a despir casacos, a pôr o braço por cima, a ursa maior num rectângulo de céu a adivinhar gaivotas melómanas, as vozes em coro a obedecer ao ritmo que vem do palco, e todos cucurucucu paloma, e todos terra terra por mais distante o errante navegante quem jamais te esqueceria, e a voz, de contratenor para baixo num ai, as palavras que pensava esquecidas e afinal me saem da boca como se não viesse dizendo outra coisa, tenho outra vez 15 anos, tenho outra vez 20 e 30 e menino do rio calor que provoca arrepio, e todos gostamos muito de você, leãozinho e que querem, continuo a gostar do Caetano, dos caracóis negros agora mais curtos e brancos e da voz sempre tão doce.


outubro 11, 2006

Deixa-me sonhar, amor
Que os teus olhos mergulham nos meus
Que os meus dedos embaraçam os teus cabelos
Que subitamente te arrepias
E sorris para mim

Deixa-me sonhar, amor
Que bebes da minha água e comes do meu pão
Que os meus dedos desenham os teus lábios
Que tranquilamente te delicias
E sorris para mim

Deixa-me sonhar, amor
Que as tuas mãos procuram as minhas
Que me tocas e a minha pele te reconhece
Que suavemente me acaricias
E sorris para mim

Deixa-me sonhar amor
Que em meus ouvidos murmuras doçuras
Que me envolves em teus braços e me alivias cansaços
Que lentamente me inebrias
E sorris para mim

Deixa-me sonhar amor
E sorrir para ti

outubro 08, 2006

Feira de Maio





















Ontem à noite Feira de Maio na Azambuja.

Calor. Areia que cobre as ruas. Mantas, flores e cabeças de touro nas varandas, portas entaipadas, tasquinhas, sardinhas, febras, tremoços, sangria, cerveja.

Grupos de pessoas unidas por t-shirts que identificam a sua tertúlia. Encontro a minha num terraço por cima dumas escadas atrás duma pequena tronqueira. Sardinhas, febras, sangria, cerveja, fatias de pão, pratos e copos de plástico.

Nos altifalantes uma voz feminina vende as facilidades da terra, a livraria, a farmácia, a drogaria, o lugar da fruta, o minimercado.

Primeiro foguete e passam os campinos a cavalo, três à frente, três atrás, no meio os touros acompanham o galope. Segundo foguete e lá vêm dois touros, a turba ulula quando se fecham as tronqueiras deixando cada animal confinado a um troço de rua, olhar assustado de espanto de quem não percebe o que faz ali. Seis touros, seis troços de rua, seis cenários de Ribatejo marialva.

Tenho pena do bicho que a sorte me ditou e anseio que alguns dos bêbados que o provocam com chapéus-de-chuva e panos coloridos leve uma cornada que o deixe em trajes menores sobre a areia, como me contaram que aconteceu na véspera. Mas este touro é manso e está assustado. Desço as escadas, encavalito-me na tronqueira e sinto o frisson quando os 500 kg trotam direitos a mim em resposta a alguma mais forte provocação ali ao lado. E é assim até à meia-noite.

Depois, toda a gente vem para a rua e percorrem-se as várias tertúlias: "O Pátio do Ferreiro", "Toiros e Fado", "Cantinho dos Tresmalhados", outra vez sardinhas, febras, tremoços, sangria, cerveja, música pimba alta de mais. Aguento o Portugal profundo até às duas da manhã, deixo os amigos que ficam até fechar a festa quando o sol se levantar, e parto para Lisboa com três amigas sonolentas.

Faço de táxi, distribuo as meninas e chego a casa às três. Luzes acesas, um filme na televisão, um adolescente adormecido, renitente em trocar o sofá pela cama.

Toda eu cheiro a sardinhas, a febras, a sangria e a cerveja. Tomo um duche e deito-me a pensar no país que temos e esperando que os seis touros já estejam no conforto da lezíria, a cheirar a erva.




De manhã acordo, dou meia dúzia de passos e enfio os pés nus na areia ainda fresca da noite. Mais vinte passos e a praia toda só para mim e para os apanhadores de conquilhas. Dois barcos lentamente no arrasto da maré vazia, para a direita e para a esquerda, para a esquerda e para a direita, em contraluz do sol das 7.

Molho os pés e a água está morna, lisa e transparente. Avanço, mergulho e a doçura líquida envolve todo o meu corpo como uma carícia. Nado o mais longe que posso, viro-me para trás e os apanhadores de conquilhas agora pequeninos abanam os crivos, separam as grandes das médias, deixam as pequenas para que a maré as leve. Piam as gaivotas e as andorinhas do mar, a água cheira a peixe fresco. Flutuo de olhos fechados, leve sinto o sol que começa a aquecer a minha cara e apetece-me ficar assim muito tempo, sem peso, sem pesos, sem nada que me mace, cabeça vazia, só sensações, a água que me abraça, o sol que me beija, nos meus ouvidos o canto dos pássaros, o mar a desfalecer na praia.

Volto para terra, a areia faz-me cócegas nos pés no regresso a casa, o gato recebe-me roçando as minhas pernas molhadas, seco-me, enfio-me de novo na cama, fecho os olhos e sonho com estrelas-do-mar.

outubro 07, 2006

varanda sobre o rio

Da minha varanda vê-se o rio. Velas brancas, cacilheiros, rastos de sonhos e de cansaços que atravessam o estuário e ao de leve arranham a água e logo se desvanecem. A ponte deixa-se entrever por entre os telhados, e eu sei que leva gente para o outro lado, que de lá vê as mesmas velas, os mesmos cacilheiros, a minha cidade ao contrário, de lá para cá e não de cá para lá.

Às vezes a bruma sobe pelo rio e o outro lado desaparece. A Arrábida desponta sobre as nuvens como uma ilha e então, é como se todo o mar se abrisse nos meus olhos. Quando a lua é cheia e o rio calmo, sento-me na minha varanda e vejo o reflexo na água do rio. À noite os barcos dormem pachorrentos nos cais e não há velas nem cacilheiros a rasgar o rio, a riscar o reflexo perfeito da lua que brilha como se fosse só para mim. Lembro-me doutras águas, doutros reflexos, uma falésia cor de barro sobre o mar chão do Algarve nos fins de tarde dos Verões da minha juventude, o motor do barco a ronronar baixinho, o chap-chap da água no casco, as gaivotas a piar como loucas, as andorinhas do mar em volteios a rasar a água, o cheiro a mar, o gosto a sal na pele, seca de tanto mar.