janeiro 02, 2008

e assim vamos indo

Vou comendo quilómetros de estrada enquanto cabeceias a meu lado, sem conversares comigo, sonolenta, embalada pelo ronronar do motor e pelo balanço do carro.

Não era assim há dez anos, não eras assim. Gostei de ti ao primeiro olhar, gostei da tua boca carnuda, do teu olhar penetrante, das formas redondas do teu corpo e, sobretudo, da vivacidade da tua conversa.

Vejo-te agora a meu lado, a cabeça que balança, um fino fio de baba que te escorre pelo queixo, o corpo já não roliço e rijo mas umas gordurinhas a mais, a aliança que te vinca o dedo das mãos outrora finas e delicadas.

Mas nem é isso e tu sabes. Eu também já com umas entradas, o peito mais mole, o ventre mais cheio, as pernas mais magras. Não é isso e tu sabes.

É o silêncio, é eu ir aqui a comer quilómetros de estrada e tu a cabeceares a meu lado, ausente, sem me ligares, sem te interessares por mim. É chegarmos a casa e tu ires para a cama sem me esperares, só um beijo fugidio a acompanhar um boa noite, estou mesmo cansada, e eu a chegar ao quarto e tu já com aquela respiração suave de quem dorme.

São os jantares de todos os dias, passas-me a água por favor e eu que boas estão as batatas, depois o sofá da sala, a televisão, eu a tentar falar do que estou a ler, dantes gostavas de trocar opiniões sobre livros, sobre espectáculos, sobre o que se passava no mundo, agora olhas para mim com um sorriso condescendente, vais dizendo pois e sim até que adormeces em frente da novela.

A estrada vai rolando por baixo do carro e eu a pensar em tudo isto, a perguntar-me para onde foi aquilo que já foste, aquilo que já fomos. Até o desejo que tinhas por mim se foi. Aceitas-me das raras vezes que te procuro por baixo dos lençóis, bem sei que não dizes que não mas nunca me procuras, nunca olhas para mim com aquele olhar que me fazia sentir o homem mais desejado do mundo.

Olho de novo para ti e penso na Adélia lá do escritório. Ela olha para mim com esse olhar, sabes? E conversa comigo sobre o que estou a ler, sobre música, sobre o que se passa no mundo. E tem ainda, com a tua idade, o brilho no olhar que tu perdeste e com tudo isso me faz sentir o homem mais desejado do mundo. É por isso que de vez em quando chego mais tarde a casa, que te vou mentindo para não te magoar quando invento reuniões fora de horas. E tu, finges que acreditas e deixas-te estar, na eterna indiferença que me levou de ti.

7 comentários:

Teresa disse...

Não acaba por acontecer mais ou menos o mesmo a todos os casais, mais tarde ou mais cedo? Ninguém me tira isso da cabeça. Mas gostei mesmo muito deste pequeno conto.
Que tenhas um grande ano!
Um beijo grande.

tcl disse...

acho que sim, Teresa, mais tarde ou mais cedo acontece a quase todos.

gir@f disse...

até aos mais novos...
excelente 2008

Anónimo disse...

Olááááá!!!
Para quem dizia há pouco tempo que este blog "anda uma merda" (foste tu!), não começaste mesmo nada mal em 2008. Belíssimo, este texto.
Beijo
Rosarinho

Indecisa disse...

É um facto que quando se toma o "Outro" por certo, algo acabará por correr mal. Infelizmente, esquecemo-nos com uma tremenda facilidade (distraídos que somos) que nas relações humanas, qualquer que seja sua natureza, é imprescindível uma constante "Entrega" de Nós. Nada sobrevive sem isso... E se falta a vontade dessa "Entrega" é porque o Essencial já morreu...
Cara TLC, é a seugunda vez que comento aqui, mas na verdade, as minhas visitas ao seu blog são quase diárias e nunca deixo de me deliciar, pois existe de sua parte a tal "entrega"! Não deixe de nos contemplar com os seu textos!
Um óptimo ano para si!

Ana

tcl disse...

Obrigada Ana. Volte sempre e desejos de um feliz 2008!

ana v. disse...

Qual merda?
Bom texto, como sempre.
Bom ano novo!