...mas tem o tom sépia do tempo.
Tu pequenino montado num cavalinho de pau, ao lado uma menina de pé apoia a mão no teu ombro como se te protegesse.
Por trás, touros, campinos, um maioral a cavalo, a lezíria que se estende em pinceladas toscas que se adivinham de cores esbatidas na tela ondulada.
Tu claro, louro, ela morena de cabelo encaracolado e traços vagamente negróides tal como a tua mãe e a mãe da tua mãe. Na mão seguras com um lencinho branco a vara que te fez campino naquele instante.
vês? puseram-me este lenço na mão porque a vara tinha picos e eu chorava
(Lembro-me das palmas tão macias, pele de seda quando os cabelos já brancos e imagino-lhes a suavidade de bebé.)
Os dois de preto, soquetes brancos, sapatinhos de verniz, olhos tristes, sorrisos ausentes, o fotógrafo
olh’ó passarinho
os avós
meninos vá lá um sorriso
e vocês nada, só aquela tristeza de perda recente. Faltam os pais na fotografia, mas nota-se o peso da sua ausência, ou talvez eu o sinta porque sempre mo transmitiste.
Falavas-me da tua avó
a bênção, minha avó
minha avó já fiz os deveres
seca, ríspida e austera, do teu avô sentado ao fundo do corredor a mirar a poeira que brilhava nos raios de luz, os dois amargurados pela perda dos filhos tão novos, da Ana
a minha Ana
gorda, luzidia, de avental na cozinha à volta das panelas a fazer os petiscos para os seus meninos
tome um pastel Antoninho, que a avozinha agora está lá para dentro e não vê
do gato amarelo que comia tripas de melão, das brincadeiras no jardim e na horta, da tua irmã
minha irmã
sempre a proteger-te as fragilidades como na fotografia
minha avó o Antoninho não fez por mal
vês meu irmão a avó perdoou-te.
Fecho os olhos, apago a fotografia e vejo-te sentado a empatar anzóis em S. Martinho do Porto, a moer o engodo de petinga e eu sentada a bambolear os pés na borda do cais todas as tardes de Agosto à espera que a bóia mexesse e
pai olha a bóia a ir ao fundo, um peixe
e tu
espera pitorrinha, (só tu me chamavas assim) espera que ele pique bem e depois deixo–te tirá-lo
e eu a enrolar o carreto toda orgulhosa a sentir os estremeções do peixe.
Abro os olhos e outra vez a fotografia à minha frente, tu pequenino montado num cavalinho de pau, um lencinho a proteger a mão, a tua irmã, os touros na lezíria atrás.
E mesmo que não haja sorrisos nesta fotografia, mesmo que se adivinhe a tristeza nos fatinhos pretos, nos sapatinhos de verniz, nos olhos distantes, é assim que te queria lembrar, aí ou no cais a empatar anzóis.
Queria apagar da memória o tubo na garganta, as agulhas nas veias, as máquinas com luzes e bip-bips, as visitas com batas e máscaras, os pulsos amarrados à cama para que não arrancasses de ti tudo o que te impedia de morrer em paz, e não consigo.
Um mês e meio naquele inferno até à noite em que o telefone tocou e o meu irmão:
T, o pai já teve 3 paragens cardíacas e 3 vezes o reanimámos. O que é que achas... se o coração parar outra vez?
e eu
tu é que és o médico, mas o pai também é meu. O que eu acho é que se o coração parar outra vez, deixa-o sossegado... por favor.
e ele
é o que eu acho, também.
Vai fazer 7 anos no fim deste mês e não consigo.
Tu pequenino montado num cavalinho de pau, ao lado uma menina de pé apoia a mão no teu ombro como se te protegesse.
Por trás, touros, campinos, um maioral a cavalo, a lezíria que se estende em pinceladas toscas que se adivinham de cores esbatidas na tela ondulada.
Tu claro, louro, ela morena de cabelo encaracolado e traços vagamente negróides tal como a tua mãe e a mãe da tua mãe. Na mão seguras com um lencinho branco a vara que te fez campino naquele instante.
vês? puseram-me este lenço na mão porque a vara tinha picos e eu chorava
(Lembro-me das palmas tão macias, pele de seda quando os cabelos já brancos e imagino-lhes a suavidade de bebé.)
Os dois de preto, soquetes brancos, sapatinhos de verniz, olhos tristes, sorrisos ausentes, o fotógrafo
olh’ó passarinho
os avós
meninos vá lá um sorriso
e vocês nada, só aquela tristeza de perda recente. Faltam os pais na fotografia, mas nota-se o peso da sua ausência, ou talvez eu o sinta porque sempre mo transmitiste.
Falavas-me da tua avó
a bênção, minha avó
minha avó já fiz os deveres
seca, ríspida e austera, do teu avô sentado ao fundo do corredor a mirar a poeira que brilhava nos raios de luz, os dois amargurados pela perda dos filhos tão novos, da Ana
a minha Ana
gorda, luzidia, de avental na cozinha à volta das panelas a fazer os petiscos para os seus meninos
tome um pastel Antoninho, que a avozinha agora está lá para dentro e não vê
do gato amarelo que comia tripas de melão, das brincadeiras no jardim e na horta, da tua irmã
minha irmã
sempre a proteger-te as fragilidades como na fotografia
minha avó o Antoninho não fez por mal
vês meu irmão a avó perdoou-te.
Fecho os olhos, apago a fotografia e vejo-te sentado a empatar anzóis em S. Martinho do Porto, a moer o engodo de petinga e eu sentada a bambolear os pés na borda do cais todas as tardes de Agosto à espera que a bóia mexesse e
pai olha a bóia a ir ao fundo, um peixe
e tu
espera pitorrinha, (só tu me chamavas assim) espera que ele pique bem e depois deixo–te tirá-lo
e eu a enrolar o carreto toda orgulhosa a sentir os estremeções do peixe.
Abro os olhos e outra vez a fotografia à minha frente, tu pequenino montado num cavalinho de pau, um lencinho a proteger a mão, a tua irmã, os touros na lezíria atrás.
E mesmo que não haja sorrisos nesta fotografia, mesmo que se adivinhe a tristeza nos fatinhos pretos, nos sapatinhos de verniz, nos olhos distantes, é assim que te queria lembrar, aí ou no cais a empatar anzóis.
Queria apagar da memória o tubo na garganta, as agulhas nas veias, as máquinas com luzes e bip-bips, as visitas com batas e máscaras, os pulsos amarrados à cama para que não arrancasses de ti tudo o que te impedia de morrer em paz, e não consigo.
Um mês e meio naquele inferno até à noite em que o telefone tocou e o meu irmão:
T, o pai já teve 3 paragens cardíacas e 3 vezes o reanimámos. O que é que achas... se o coração parar outra vez?
e eu
tu é que és o médico, mas o pai também é meu. O que eu acho é que se o coração parar outra vez, deixa-o sossegado... por favor.
e ele
é o que eu acho, também.
Vai fazer 7 anos no fim deste mês e não consigo.
6 comentários:
T.
Parabéns por mais este post absolutamente fantástico, porque visivelmente escrito com o coração na ponta dos dedos...
E por mais que o tempo passe, há coisas que continuam a custar tanto...
Um beijinho
Rosarinho
P.S. Acho que inaugurei hoje os comentários no teu blog, apesar de já ser visita há uns dias!
Quando é que almoçamos ?
Este post está aqui quase há 48 horas. Já o li várias vezes e também por várias vezes tentei comentar, não consegui. Gostei do que li, já o mostrei, tentei descrever aqui o que li mas apenas consigo arrancar uma palavra para te deixar, FORÇA;-)
Ah e também um pedido, já agora. Continua a escrever estórias destas
Acho que apenas resta curvar-me respeitosamente perante este texto absolutamente fantástico...
T, está excelente!
(Eu já cá vinha muitas vezes. Pois agora, acho que vai ser mais frequente, ainda... :) )
Beijos, e um grande xi- para te dar a Força de que o Gonçalves fala, e bem!, aqui em cima.
Estamos aqui. :)
simpáticos, vocês, e queridos também. obrigada.
devia haver mecanismos na memória que nos fizessem esquecer as coisas más da vida deixando mais espaço para as boas recordações. infelizmente, ou talvez não, não é assim. é desta forma que vamos ganhando resistências e capacidades de auto-protecção,não é?
Rosarinho, querida, pois quando quiseres; hoje, para a semana... é só ir à janela e mandar um grito (talvez o telefone interno seja melhor...)
T. o teu hoje (para o almoço) é já ontem, porque só agora vim aqui. 2ª feira não dá, mas noutro dia qualquer pode ser que oiças uns gritos e vejas uma maluca a esbracejar numa janela, mas vou-te ligar e, se der, fazemos outro almocinho como o da semana passada. Valeu!
Rosarinho
Hoje sim. Olá Teresa.
Finalmente reagiste às minhas picadelas. Esta sim é a Teresa que aprendi a ler, a Teresa que gosto de ler. Este texto tem tudo. Tempo, história, amor, amargura, saudade, ternura...tudo.
7 anos são passados e muitos mais passarão e jamais se apagam da memória momentos vividos tão na pele, tão no peito tão na garganta e no nó que enlaça e deslaça e enrola e.......
Fica-nos a memória (enquanto Deus ou alguém por ele ou ninguém por nada permitir que essa memória se mantenha lucida e clara em nós).
Se fosse possivel imaginar tal coisa, não duvido que alguém neste momento olha para ti e com um sorriso rasgado na boca e uma ruga no olhar diz..." lindo, muito lindo. Por ti valeu a pena. Por te ler, por te saber e por quem és".
Um beijo Teresa e parabéns.
São estas as 1000conversas.
JP
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