março 26, 2008

palavras com sabor

Quando era miúda lia muito. Se calhar lia mais do que agora. Sem internet, sem televisão durante a tarde, quando não tinha programa de brincadeira com as outras crianças da rua, lia.

Depois dos Nodis (sim, o Nodi é um boneco com umas boas dezenas de anos) e das Anitas, passei, como todos os miúdos da minha geração, para as colecções de aventuras da Enid Blyton, daí para os clássicos juvenis de Charles Dickens e para toda a colecção da "biblioteca dos rapazes" do meu irmão, onde aprendi bastante sobre a conquista do oeste americano e a história da América do sec XIX.

Comecei os autores brasileiros como toda a gente, com "o meu pé de laranja lima" do José Mauro de Vasconcelos e tomei-lhe o gosto. Fui lendo o que deste autor havia lá em casa e, esgotadas as prateleiras dos livros que os meus pais achavam adequados à minha idade, pedi ao meu pai para me deixar ler livros de pessoas crescidas, em particular de Jorge Amado de quem o ouvia tecer os maiores elogios. O meu pai hesitou, perguntou-me se eu já tinha lido isto e aquilo, e eu já e, depois de alguma insistência lá me deu para as mãos "capitães da areia". Daí em diante, li tudo o que havia de Jorge Amado nas prateleiras do meu pai.

Hoje percebo claramente que os livros de Jorge Amado, lidos na puberdade e na adolescência, influenciaram sobremaneira a minha forma de ver as relações entre as pessoas, o sexo, o amor.

Mas do que eu queria falar mesmo, era da línguagem, das palavras mágicas do Brasil que me chegaram pela pena do Jorge Amado e que não se utilizam cá. Não sei se por isso, se por serem mesmo palavras especiais, ficaram para sempre na minha memória como pérolas de um colar que vou desenrolando, e saboreando conforme as ligo a determinados livros, a determinadas situações, às coisas que agora me sugerem ou que me fazem lembrar.

Uma das coisas que gosto no português falado e escrito por brasileiros é o facto de muitas palavras se aproximarem tanto daquilo que representam: bunda, por exemplo. Não há palavra mais redonda para o traseiro do que bunda. Para dizer bunda, a boca desenrola cá para fora a palavra que a enchia e, quando esta sai, imaginamos logo um belo rabiosque, bem alçado, bem redondo e fornecido de carnes rijas. É como cachoeira. Diz-se cachoeira e ouve-se o canto da água a cair. Nesta onda estão palavras como cangote, xoxota e xibiu, forró, xodó, moqueca, roça, beiju, cabrocha, moleque, siri, perereca, cachaça, capivara, jagunço e sei lá que mais.

Outra coisa de que gosto é o uso do gerúndio. Dizer estou voltando, estou chegando, estou fazendo tem uma música que estou a voltar, a chegar ou a fazer, não têm. Gosto de diminutivos feitos duma forma diferente da nossa: devagarzinho, radinho de pilha, sambinha.

Gosto das negações ao contrário: sei não, vem não, faz isso não.

Gosto de todas as palavras ligadas ao candomblê e aos seus terreiros: orixá, oxum, exu, iemanjá, xangô, oxalá.

Gosto dos nomes dos instrumentos musicais: agogô, reco-reco, atabaque, caxixi, berimbau e gosto de nomes ligados ao folclore como bumba-meu-boi.

E lembrei-me de tudo isto porque hoje me visitaram de um sítio chamado Blumenau. Nome fantástico, blumenau. Só podia ser no Brasil mesmo.

Nunca fui ao Brasil. Tenho de ir em breve.



Município de Blumenau no estado de santa catarina. Bem no Sul.

6 comentários:

Sofia K. disse...

Teresa, mas que inspiração! Adorei este teu texto, porque se passou o mesmo comigo, muitos anos mais tarde. (LOL) Para mim estavam reservados os livros das prateleiras do meu quarto e nada mais. Mas um dia acabaram! E eu não fiz mais nada, menos educada do que tu, comecei a ir às prateleiras do meu pai 'roubar' aqueles livros que ele dizia: 'Mais uns tempos e já podes ler!' Mas eu, sempre desobediente, roubava, levava para o quarto e escondia debaixo da cama. Mas, quando eram muito grandes, tinha de voltar a pôr na estante! Mas eram as minhas leituras secretas! Foi assim que li Jorge Amado, Eça, Camilo e muitos estrangeiros que eu mal sabia pronunciar o nome. Era atraída pelos títulos, não pelas capas, que eram velhas e quase todas iguais. Muitos voltei a ler anos mais tarde, para finalmente os compreender. Mas valeu a pena essa leitura proíbida.

Também gostava especialmente do jeito de falar dos brasileiros. Era 'português com açúcar', era portuguêds sambado, dançado... Uma das minhas preferidas era iemanjá e sertão e quando escrevia no meu diário era sempre no gerúndio, porque ficava mais bonito!

beijos

MariaV disse...

TCL, também gostei muito deste teu post, até porque também gosto muito de algumas palavras usadas no Brasil. Ai o Brasil, que saudades de lá ir...
Eu ando mais levezinha e deixei agora mesmo uma subtileza para ti no meu último post (LOL)!

ana v. disse...

TCL, sou mais uma que te dá os parabéns ("parabeniza", como diria um brasileiro com muito mais lógica e simplicidade) por este post que adorei. E também eu me identifico totalmente com este percurso literário (também séculos mais tarde, claro!) que me levou aos brasileiros e sobretudo a Jorge Amado. Ainda hoje o Brasil, para mim, é muito o universo de Jorge Amado, embora eu saiba que isso corresponde mais à Baía do que a qualquer outro sítio. Quanto às palavras, tens toda a razão. E nas expressões idiomáticas nem se fala, eles têm sempre a certa para o momento certo.
Tens mesmo que ir ao Brasil!
Beijinhos

Anónimo disse...

És aqui a TCL Amada, idolatrada, salve salve....
Um prazer saber sonoro o nosso português-brasileiro e tão rico a nível não apenas sonoro mas afectivo e emocional. Amei o post, aliás muito bem recomendado por uma amiga do coração. Escreves bem. E ainda que o Jorge, Amado que era mesmo, tenha contribuído, tens uma sensibilidade à flor da pele. Parabéns! beijos da brasuca
CoRa

Teresa disse...

A grande vergonha é eu ler os posts e não ter tempo para os comentar. Fui eu quem recomendou à CoRa este teu post (b-r-i-l-h-a-n-t-e) em que me vejo em quase tudo como num espelho. As mesmas referências. Tempo para o comentar não arranjei, até porque o comentário seria longo, muito longo. Mas, como sempre, gosto de partilhar tudo o que é bom. Ou muito bom, neste caso. Passei-o adiante. Ganhaste leitora devota, estou a ver :)

Teresa disse...

P.S. E manterei até à morte que a Academia Nobel devia fazer penitência pública pela vergonha de, ano após ano, ter negado o prémio a Jorge Amado. Até que, como eu, qual moderna Cassandra, andava a preconizar havia uns bons 15 anos, o deixaram morrer. Já tinha acontecido com outros grandes. Proust. Borges. Vergílio Ferreira. Torga (obrigada, Sofia, temos de falar sobre aquele mail que nos enviaste a todas, e que amei). Nem falo de Pessoa, aí estão ilibados, só publicou um livro em vida.