dezembro 31, 2006

princípio, meio, fim

Assim como há dias vazios nas nossas vidas, há outros em que uma série de pequenas coisas, aparentemente sem qualquer relação umas com as outras, se interligam nas nossas cabeças, juntando-se num todo que parece trazer um outro significado à existência.

Ontem levei o meu cão comigo para o trabalho, coisa que raramente faço, deixei-o um pouco à solta na área de estacionamento e depósito de materiais diversos que circunda o edifício, esperando que ele depois viesse ter comigo. Como qualquer rafeiro manhoso, o animal é esperto. Eu é que vou perdendo qualidades e bom, nunca mais me lembrei dele a não ser quando, chegada a casa para almoçar com o meu filho, reparei que me faltava o bicho. Voltámos para trás, o miúdo numa aflição, prevendo a irremediável perda do cão que ele imaginava já em Algés, eu a tranquilizá-lo com os porteiros que vigiam o portão de entrada no recinto, mas também com o coração pequenino. Chegados ao local do crime e indagados os porteiros: “os senhores viram o meu cão?”, tranquilizou-nos a resposta breve: “Andou por aí a manhã toda atrás duma cadela. Está lá para trás”. Suspiro de alívio, lá rolámos devagarinho, até que o vimos ao fundo mais a bicha, os dois com um ar culpado mas satisfeito. Apanhá-lo foi um desassossego. Para a frente, para trás, inversão de marcha pelo meio de restos de candeeiros e bancos de jardim, chamá-lo era o mesmo que falar com uma porta, a solução foi o meu filho correr atrás dele e pegá-lo ao colo. Vinha suado, sujo, ofegante, com o pelo todo enrodilhado e um inegável sorriso. Tinha perdido a virgindade.

Chegada a casa deparo-me com uma cena de filme. Dois homens de fato e gravata pretos transportavam para fora do prédio e dentro de uma espécie de saco-cama cinzento plastificado algo que só podia ser um corpo. Percebi que era a velha do 4º Dto, quando me cruzei mais tarde no elevador com a filha e o genro, de ar enlutado e pesaroso. A morte dos velhos faz parte da ordem natural das coisas, mas mesmo assim fiquei abatida. Ainda há dois dias tinha visto a senhora, aprumadíssima como sempre, revelando por trás das rugas e da pintura discreta, um rosto que devia ter sido belíssimo na juventude. Agora, tinha perdido a vida.

À noite, respondendo ao apelo de uma amiga, fui a uma discoteca de música africana. Gosto destes sítios onde impera uma certa descontracção, onde a sensualidade da música convida à dança, desconhecidos nos convidam para uma morna ou um funáná e, de par em par e com umas caipirinhas pelo meio vamos desapertando as grilhetas que nos amarram a formas de vida estereotipadas, esquecendo as preocupações, tristezas e trapalhadas da vida que construímos tantas vezes apenas no nosso imaginário. Saí de lá com a certeza que a vida é tão sagrada que não podemos perder um minuto que seja a vivê-la mal vivida.

Foi assim este dia: um princípio, um fim e um meio, que me fizeram pensar que não é preciso esperar pelo dia 1 de Janeiro para fazer uma lista de “objectivos a cumprir no novo ano”. Todos os dias podem ser o início de um novo ano, dias de mudança. Mudança para uma vida vivida com alegria, fazendo por soltar as amarras das coisas que nos entristecem e partir em frente como um barco que ligeiro abandona o cais sem saber se algum dia voltará ao mesmo porto, liberto da carga que quase o afundava.

dezembro 30, 2006

SMS'S

Nesta altura do ano as companhias telefónicas devem ver aumentar grandemente os seus lucros à conta da enorme quantidade de mensagens de desejos de bom natal e bom ano que toda a gente envia. No Natal, ao qual tento escapar-me em tudo o que posso, limitando-me a restritas obrigações familiares, apenas respondi a quem me enviou mensagens, por uma questão de delicadeza, com uma fórmula igual para quase todos, excepto para aqueles que me são mais chegados.

Mas quanto ao Ano Novo, juntei-me aos milhares que contribuem para os fundos das várias Telecomes e enviei aos meus amigos e conhecidos uma mensagem que rezava assim:

As pessoas com classe e que sabem o que querem preferem "ANO NOVO". Por isso, a todos os meus amigos recomendo: não espere pelos saldos. Compre já: "ANO NOVO", à venda numa banca perto de si. Beijos da TCL.

Depois, esperei pelas respostas. Tive de tudo:

- Os que não responderam.

- Os que responderam com uma mensagem "tipo" das que se enviam a toda a gente, do estilo: "Feliz ano novo com muita saúde e alegria". Ok, melhor do que nada.

- Os que responderam com uma mensagem mais personalizada, demonstrando q podem perder 5 minutos do seu precioso tempo com um "Querida tcl, muito obrigada e tudo de bom para ti também". Melhor.

- E depois aqueles que, correspondendo à minha ideia, me enviaram coisas com piada e imaginação. A esses agradeço e deixo aqui alguns dos exemplos que me fizeram soltar umas boas gargalhadas:

"Já sabia e até já tinha comprado. Eu sou logo das primeiras., que é para não esgotar. Até comprei dois para o caso de um não estar bom."

"Andas atrasada! Já comprei, faz agora um ano... Não compro mais outro, há que resistir à sociedade de consumo"

"Obrigada pela dica! Vou a correr à banca, apesar do meu poder de compra estar deveras comprometido com o chomage..."

"Porque hei-de comprar mesmo em saldo, se posso ter um Ano Novo grátis? Mas agradeço! E já compraste o teu?"

E pronto.

dezembro 26, 2006

CÁ-TE ESPERO

Saio pela noite da cidade ao som de todas as músicas que já ouvi e que se baralham na minha cabeça em novas melodias a descompasso, em busca de traços da nossa presença. Esbarro nas esquinas com memórias do passado, flashes do presente e sonhos do futuro e ficamos ali os quatro, com vénias e com licenças a ver quem passa primeiro e acabo por voltar para trás, pelos caminhos já feitos, repisando os mesmos passos, num eterno labirinto de que não encontro a saída.

Subo e desço ruas e avenidas procurando o teu nome abraçado ao meu, as tuas pegadas ao lado das minhas, marcas dos teus e dos meus dedos nas paredes das casas, nas montras das lojas, nos corrimãos das escadas.

Procuro pelos muros sombras de abraços, restos de beijos, ecos de palavras murmuradas num assomo de desejo.

E nesta busca passo as noites, em sonhos de vigília até que chegue o dia e a luz da manhã de novo me traga a realidade da tua ausência.

dezembro 16, 2006

Abrir o coração

Abri o coração e deixei-te entrar. De início a porta não queria ceder, dobradiças perras da falta de uso, mas vinhas com aquele óleo infalível feito de palavras doces, de olhares de desejo, de sorrisos cúmplices e então ela abriu-se de mansinho sem um ruído e tu entraste.

Para que te sentisses bem, limpei o pó, as teias de aranha, tirei os lençóis de cima dos sofás, abri as janelas, deixei entrar o sol e o calor, pus flores frescas nas jarras com água limpa. Ficou como novo o coração, cheio de luz, confortável e acolhedor. Viste as caixas onde guardo os amores, os carinhos e ternuras, as alegrias e tristezas, mexeste em todo o lado com um ar curioso, passeaste pelas aurículas e ventrículos, espreitaste pela aorta, avançaste um bocadinho pela veia cava superior mas não te interessaste muito pela inferior, talvez com medo de cair. Achei a tua presença agradável, deixei-te ficar e tu instalaste-te com o pouco que tinhas trazido contigo e uma cópia da chave que te dei.

Passados uns dias, perguntaste se podias dar um saltinho à cabeça. Hesitei, pois parecia-me que estavas bem no coração, mas acabei por te mostrar o caminho. Não era difícil e, mesmo sem mapa, chegaste lá num instantinho e sem te enganares uma só vez. Achei graça, pois tinhas-me dito que o teu sentido de orientação não era grande coisa. Percorreste as circunvoluções, paraste nalgumas memórias, interessaste-te pelos raciocínios lógicos e pelas abstracções, questionaste alguns pensamentos e razões e, sem que eu desse por isso, foste tirando as coisas do lugar, deixando-as espalhadas por aqui e por ali. Não me preocupei, pois estava a gostar de observar a tua curiosidade e pensei que depois, quando tivesse tempo, logo arrumaria tudo.

Embora nem sempre te veja, sinto o rasto da tua presença, o teu cheiro, o teu calor, vejo as tuas pegadas, a tua sombra a dobrar uma esquina e, por mais que arrume, encontro sempre alguma coisa fora do lugar, por isso sei que continuas a andar por aqui.

Por enquanto, não mudo a fechadura. Gosto de te ter por cá. São estas marcas da tua presença que me fazem manter as janelas abertas, mudar as flores da jarra, limpar o pó, impedir que se formem de novo teias de aranha e olear as dobradiças da porta.

É bom abrir o coração e deixar alguém entrar e desarrumar um pouco a nossa vida. É isso que nos faz estar VIVOS.

E tu? Quando foi a última vez que abriste o coração?

dezembro 13, 2006

A bolsa

Da minha mesa habitual do pequeno-almoço, vejo-a subir a rua.

Calças brancas bem justas de cintura descaída, camisola preta cintada, botas e cinto da mesma cor, as botas de cano alto por fora das calças, o cinto largo com estrelinhas de metal, bolsinha debaixo do sovaco, parece ignorar os 7º matinais.

Entra no café e BOM DIA! O estabelecimento não justifica tantos decibéis, um balcão e 3 mesinhas, mas ela detesta passar despercebida. Senta-se de perninha cruzada, tronco serpenteante, pousa a bolsinha e SR. ARMANDO ERA UM CAFÉ SE FAZ FAVOR.

Eu levanto o sobrolho detrás do meu jornal, a velha dos sudokus dá mais uma passa, apaga um 3, prefere um 5, hesita, rói o lápis e acaba por se decidir por um 7. Em suma, não lhe liga peva.

Ela não se deixa impressionar pela indiferença dos circunstantes, dedinho espetado na asa da chávena e ESTA ZONA AQUI É MUITO PERIGOSA, NÂO É? Ausência de respostas e IMAGINEM QUE NA SEXTA-FEIRA FUI ASSALTADA ALI DEFRONTE DO MEU SALÃO. Aqui marcou pontos. Eu e a velha dos sudokus levantámos as cabeças o que lhe deu alento para POIS ESTAVA ALI À ESPERA DE TAXI E LEVARAM-ME A BOLSA. Mas onde?, mas como?, pergunta a Graciete empregada de mesa. ESTAVA ALI NA RUA COM UMA BOLSA IGUAL A ESTA DEBAIXO DO BRAÇO, ASSIM, levanta-se e exemplifica, E VIERAM UNS NUMA MOTA E LEVARAM-ME A BOLSA.

Pois, nesse preparo estavas mesmo a pedi-las, digo eu para o meu jornal, quem é que se lembra de se por no meio da estrada de corpinho bem feito com uma bolsinha ensovacada?

A velha dos sudokus tartamudeia qualquer coisa que não percebo e POIS EU ACHO ESTA ZONA MUITO PERIGOSA. ALI A D. ETELVINA MELLO, vira-se para mim e CONHECE? abano a cabeça, UMA SENHORA TAMBÉM VELHOTA, pata na poça, repara na velha dos sudokus e acrescenta PARA AÍ COM 91 ANOS, QUE ANDA SEMPRE COM UMA CRIADA FARDADA, para mim outra vez, MAS NÃO CONHECE???, bolas, não, abano de novo a cabeça, JÁ FOI ASSALTADA 3 VEZES, POIS FOI. OLHE, EU ATÉ VOU CONTRATAR SEGURANÇA PARA O MEU SALÃO. E NA SEXTA-FEIRA ESTIVE MESMO PARA CHAMAR A POLÍCIA. SÓ NÃO CHAMEI PORQUE NO DIA SEGUINTE VINHA LOGO NOS JORNAIS TODOS QUE EU TINHA SIDO ASSALTADA, AH POIS VINHA, POR ISSO NÃO CHAMEI, QUE EU NÃO QUERIA ESTA HISTÓRIA NOS JORNAIS. De referir que a mulher, efectivamente, penteia metade do jetset.

E para mim outra vez MAS NÃO ACHA ESTA ZONA PERIGOSA? Eu lá respondo com um não, não acho, aliás passeio o meu cão muitas vezes à 1 ou 2 da manhã e nunca tive qualquer problema. AI SIM? POIS OLHE, EU, TINHA MEDO. Não sei que responder e rebolo os olhos detrás do meu jornal.
SR. ARMANDO, A MINHA CONTA SE FAZ FAVOR. ENTÃO BOM DIA.

Olho pela vitrina, vejo-a a descer a rua rebolando as ancas, de bolsinha debaixo do braço, segura de que todos a olham e digo ao meu jornal: não tarda, levam-lhe a bela da bolsa outra vez.

Retorno à leitura das notícias do dia, no silêncio agora pacato do café, onde se ouve apenas o riscar do lápis e o safa safa da borracha no livrinho dos sudokus.

dezembro 10, 2006

Carta ao Menino Jesus (2)


Querido Menino Jesus

Para este Natal queria:

- um saco cheio de amor aos pedaços, donde eu pudesse ir tirando um cada dia e, devagarinho, muito devagarinho, fosse construindo um amor inteiro de pedaços feito e que de tão bem feito não se desmanchasse nunca mais;

- uma caixa embrulhada em papel vermelho, de laçarote verde, e dentro da caixa milhares de beijos bem dados exigindo resposta de igual qualidade;

- um manto de ternura que me cobrisse da cabeça aos pés sempre que me sentisse tão irremediavelmente só como me sinto agora, e debaixo do manto o meu amor tão carente de mim como eu dele;

- um enorme baú pleno de olhares e conversas, de sorrisos e gargalhadas, de doces sussuros de palavras tontas nos meus ouvidos, de carícias e valsas dançadas em abraço apertado à luz do luar.

dezembro 07, 2006

Carta ao Menino Jesus


Querido Menino Jesus

Para este Natal queria pedir-te:

- que desses à minha mãe um emprego diferente, porque estamos os dois muito cansados de andar a correr no meio dos carros a vender pensos rápidos que quase ninguém compra.

- que pusesses um sorriso na cara do meu pai quando chega a casa carregado com o papelão que conseguiu apanhar.

- que tapasses o buraco do telhado da barraca para não entrar água quando chove.

- que pudéssemos comer carne e peixe uma vez por mês.

- que arranjasses a concertina do meu avô, pois desde que se rompeu o fole nunca mais ouvimos música nem dançámos.

- que o meu irmão mais velho, que já tem 9 anos, possa ir à escola em vez de sair a trabalhar com o meu pai.

- que o bebé que está para nascer tenha uma caminha só para ele e uma roupa nova.

- e para mim, se ainda puder ser, queria um pião, uma bola colorida e cinco pedrinhas para jogar com os outros meninos.

dezembro 06, 2006

Gaston


O meu gato chama-se Gaston e é, sem sombra de dúvida, o gato mais bonito do mundo. Durante o dia anda lá na vida dele, pouco me ligando a não ser que tenha fome e nessa altura enrola-se-me nas pernas aos miados.
Às vezes não o encontro. Chamo, procuro por toda a casa e acabo por dar com ele a dormir misturado com camisolas de lã, dentro dalgum armário ou dalguma gaveta que alguém momentaneamente deixou abertos. Olha para mim de lado, faz um ar indiferente e superior, espreguiça-se e vai-se no seu bamboleio elegante, de rabo no ar.
Quando vou à casa de banho, empoleira-se no bidé à espera que eu lhe abra a torneira, pois gosta de água fresca. Se me sento no sofá à noite, salta-me para o colo e aninha-se a dormir enquanto lhe afago a cabeça e o dorso.

Dorme comigo, o meu gato. Quando me deito e pego no livro que estou a ler, ele roça a cabeça nas páginas, ronronando por uma festa. Se está mais bem disposto, lambe-me o braço, cheira-me os lábios sem os tocar num prenúncio de beijo e, finalmente, enrosca-se encostado às minhas pernas. São os nossos grandes momentos de intimidade.

dezembro 04, 2006

perdendo-me

Perdida no fundo do fundo do teu olhar
Procuro retalhos de vida vivida
Onde me reveja em ti

Recordações de infância
(a minha avó a descascar maçãs nos degrauzinhos da entrada, perfume e um raio de sol)
De adolescência
(o primeiro beijo nas ondas da Costa da Caparica a saber a sal)
De juventude
(uma tenda numa praia deserta do Alentejo e lá fora a chuva a cair)

Procuro-te e não te vejo.
Perdida no fundo do fundo do teu olhar
Encontro labirintos de memórias onde eu não estou.

Outro rio, outras pontes, outras colinas, outros barcos
Cruzo-me com estranhos que passam sem me ver
Desconheço as ruas, as praças e avenidas

Num labirinto em ti onde não me revejo
Vivo os retalhos da vida
Perdida no fundo do fundo do teu olhar

novembro 29, 2006

Nomes próprios


Pasmo sempre que alguém me telefona e se apresenta do outro lado com um “boa tarde, fala o Arquitecto Xpto da Silva” ou “daqui é a Engenheira Maria Macaca”. Invariavelmente pergunto a mim mesma se o epíteto será nome próprio e, nesse caso, se derivará de uma tradição familiar (como na minha família onde há já várias gerações de irremediáveis Antónios) e se terá dado origem a um diminutivo carinhoso lá em casa, como Tetinho ou Enginha ou assim.
Contenho-me sempre a custo para não fazer esta pergunta, não vá o interlocutor levar a mal ou, quem sabe, ter mesmo a formação académica estampada no bilhete de identidade e não querer intimidades com qualquer um.
Não sei se as normas do Registo Civil permitem a adopção deste tipo de nomes, mas diria que sim, dado o enorme número de pessoas que assim se apresenta. Penso que curioso seria o casamento de dois destes, quando o padre, rabi ou notário, na hora dos votos dissesse: “Doutor, aceita por esposa, Professora, aqui presente, prometendo amá-la e respeitá-la e etecétera e tal ?”.
Convenhamos que tinha graça.
Esta possibilidade confere ainda algumas vantagens aos assim baptizados: os graus académicos, já ninguém lhos tira. Se o menino se chamar Doutor, por exemplo, mesmo que um dia mais tarde decida ser vendedor de castanhas, será sempre Doutor. Fantástico, não? E se calhar ser engenheiro? Ficará Engº Doutor, que ainda é melhor.
Pois é. Eu já dificilmente consigo adoptar para mim própria esta moda, habituada que estou a apresentar-me com o nome que os meus pais me deram. Mas está decidido. Se tiver mais algum filho, hipótese um pouco remota, vai chamar-se Meteorologista.

novembro 11, 2006

Ele chegou já perto do fim do dia, como fazia quase sempre. Gostava da praia àquela hora, com o sol quase a pôr-se mas ainda capaz de aquecer a pele, as famílias a arrumarem os chapéus, as toalhas e as lancheiras, o areal cada vez mais vazio de pessoas, trocadas pelas gaivotas que procuravam algo com que matar a fome. Com frequência era a hora em que começava a soprar um vento quente e em que o mar se tornava mais apetecível. Sentou-se na areia morna, descalçou os sapatos e enterrou os pés. Ficou assim durante algum tempo a olhar as ondas que se repetiam no mar, cinco pequenas duas grandes, é o que dizem, mas nem sempre era assim, já o constatara vezes sem conta, sem perceber muito bem se estava desencontrado do ritmo ou se eram as ondas que se enganavam.

Foi nessa altura que a viu. Vinha descalça, com os cabelos e o vestido de algodão branco a esvoaçarem ao vento. Chamou-lhe a atenção, pois parecia desesperadamente procurar algo que não encontrava. Levantava espreguiçadeiras, espreitava por baixo das canoas e gaivotas de aluguer, perto dos toldos, abria as tampas das papeleiras, inclinava-se junto à beira-mar naquela linha de algas e conchas que a maré deixa quando baixa, remexia com o pé, dava mais uns passos, voltava a olhar em todas as direcções e continuava. Ela aproximou-se mais um pouco. Era bonita e balançava as ancas quando caminhava como se dançasse. Nessa altura, os seus olhares cruzaram-se, ele esboçou um sorriso, ela fez um ar intrigado, aproximou-se mais e falou assim, sem mais introduções:
- faz lá isso outra vez, por favor
- o quê?
- esse sorriso
Ele sorriu de novo e ela fez um ar desapontado:
- é parecido mas não é o que procuro
- e o que procuras?
- procuro um sorriso.
- um sorriso? Dentro das papeleiras, no meio das algas?
- Já vi que não me podes ajudar, disse ela, não percebes nada de sorrisos. Um sorriso encontra-se normalmente onde menos se espera.

Ele reflectiu um pouco e pensou que a afirmação dela não era totalmente desprovida de senso. Resolveu ajudá-la embora não estivesse muito bem a ver como.
- Então conta lá como é esse sorriso. Tenho tempo e nada para fazer. Posso ajudar-te se quiseres.
Ela mirou-o levantando uma sobrancelha, fazendo um ar admirado e torcendo o nariz, o que dava ao seu rosto uma expressão engraçada, de que ele gostou.
- Bom, o sorriso que procuro é o meu. Vim aqui há uns dias, na altura não dei pela falta, mas quando cheguei a casa reparei que já não o tinha comigo. Ainda pensei que tivesse saído sem ele, procurei em todos os armários e gavetas, em todas as malas, na despensa, na casa de banho, até no frigorífico e nada.
Mesmo no espelho, lugar mais óbvio para se perderem sorrisos, eu procurei. Depois lembrei-me que a última vez que o usara tinha sido aqui. Só pode ter ficado cá.
- Está bem, disse ele e levantou-se. – Vamos lá procurar esse sorriso. Tens é de me explicar como é.
- Bom é um sorriso fácil, espontâneo e que encaixa bem na minha boca. Até agora nunca o tinha perdido. Não percebo o que aconteceu…
- Pois eu acho que a forma como o perdeste pouco interessa agora. O importante mesmo é encontrá-lo e pô-lo no sítio de novo.

E assim caminharam os dois pela praia, procurando aqui e ali e conversando pelo caminho. O sol entretanto pusera-se, a praia estava deserta e a lua começava a nascer reflectindo-se na água. O tempo foi passando sem que dessem por isso, trocaram pensamentos e memórias, foram-se aproximando em corpo e em alma e descobrindo aos poucos que há muito que se procuravam. Quando começou a esfriar um pouco, juntaram uns gravetos, pauzinhos, restos de madeira que o mar sempre oferece à praia e fizeram uma fogueira. Sentaram-se juntinhos e conversaram toda a noite, já esquecidos da procura do sorriso dela. Ao amanhecer, quando o sol começou a aquecer e a praia ainda era só deles, despiram-se e entraram no mar. A água estava morna e envolveu-lhes os corpos como um manto. Ele abraçou-a de mansinho, ela aconchegou-se, olharam-se nos olhos e neles viram o seu passado, o seu presente e o seu futuro. Ele beijou-lhe a testa, ela sorriu e disse:
- Vês, eu sabia que tinha perdido o sorriso nesta praia. Já o encontrei.

novembro 04, 2006

Ausência.
O peso da ausência de tudo.
De tanto querer, de tanto esperar, no coração não cabe mais nada, apenas o peso da ausência que ocupa espaço demais.

Uma janela que não se abre, portas fechadas, trancadas, aprisionando sentimentos e vontades.

Sonhos. Interrogações. Sim? Não? Talvez? Como será? Como seria?
Fico aqui? Vou para ali? Aqui o conforto e a segurança do que já sei, ali o desconhecido a sorrir para mim, a acenar-me e a dizer “vem”.

Como será? Como seria?
Grilhetas nos pés, algemas na cabeça. Quero ir mas não vou, fico aqui no meu buraquinho.

Descobrir. Viver outra vez. Ir e voltar. Ir e ficar. Aqui sei os percursos de cor. Posso fazer tudo de olhos fechados. Conheço os caminhos, os cantinhos, os esconderijos onde tiro as máscaras, onde posso ser eu. Sou eu? Alguma vez eu sou eu?

Medo. Medo de acordar, de sentir outra vez. A dor, a alegria, a chuva e o sol.
Medo de me magoar, de magoar.

Vidas bolorentas, sempre iguais. Rotinas. As mesmas palavras, os mesmos gestos, os mesmos olhares. Escovas de dentes juntas no mesmo copo testemunhando intimidades que já foram.

Ausência. Ausência de presente, medo do futuro. Portas trancadas. Janelas fechadas. Nós na garganta.

Quero lá saber. Ponho uma venda nos olhos, algodão nos ouvidos, abro a janela e sinto um raio de sol. Passo para o outro lado sem olhar para trás.

novembro 01, 2006

Vi-te ao longe, aproximei-me devagarinho e, sem que desses por isso, pousei-te no ombro. Inspirei com força e cheirou-me bem. Ao de leve toquei a tua pele e estremeci.

Cheguei-me mais um pouquinho, enfiei-me entre o colarinho da camisa e o pescoço e fiquei assim, quietinha, a avaliar a temperatura do teu corpo, a ouvir a tua voz e o teu riso.

Percebi que eras tu.

Subi para a orelha e entrei pelo ouvido. Percorri canais, veias, artérias, dei cambalhotas em músculos, trepei por ossos e tendões, espreitei para fora e vi o mundo pelos teus olhos, respirei o ar dos teus pulmões, bebi o teu sangue e brinquei na tua boca.

Ao fim do dia já estava cansada, mas sentia-me tão bem que, em vez de me ir embora, resolvi ficar mais um dia e procurar um lugar para dormir. Encontrei o coração e o seu bater compassado massajou-me o corpo e embalou-me. Dormi como um anjo.

Acordei no dia seguinte e vi que o coração estava iluminado. Dei uma volta pelo cérebro, esquivei-me de sinapses, desarrumei pensamentos e memórias, abri e fechei caixinhas escondidas de onde saíam surpresas e promessas de descobertas sem fim. Li alguns dos pensamentos e gostei. Mirei-me nas memórias como num espelho. No fim, tentei arrumar tudo no mesmo lugar, mas não sei se consegui.

Senti-me feliz, percebi que em ti tinha tudo o que precisava e fui ficando.

Desde esse dia que tu és a minha casa. Durmo no teu coração, passeio pelo teu corpo, embriago-me com o teu sangue e descubro mistérios na tua cabeça.

De vez em quando, faço-te cócegas nos dentes e tu sorris sem saberes porquê.

outubro 18, 2006

S. Martinho do Porto

O meu pai sentado num banquinho no cais, calções, camisa de mangas curtas, panamá, a cana de pesca na mão, ao lado um saco com linhas, anzóis, chumbos, carretos, tesouras enferrujadas e um cheiro peculiar que guardo na memória, eu de cócoras ao lado, não mexas aí que te picas, posso pôr o bicho na anzol, pai? e ele a explicar-me tudo com infinita paciência, a minhoca a enrolar-se nos meus dedos e eu já a não querer mexer naquilo mas sem dar o braço a torcer, ao fim do dia um balde com água do mar e dois, três peixinhos minúsculos lá dentro, explorando o balde em eternos círculos até que a maré virasse e regressassem às águas da baía.

Quando chegavam as traineiras amarelas “Apanha Submarina de Algas”, o ar enchia-se daquele cheiro a profundezas do mar, as algas castanhas a quererem escapar-se, os barcos só com uma bordinha de fora de tanto peso, os apanhadores ainda fardados de preto com as máscaras, as botijas, as barbatanas, todo o santo dia para cima e para baixo, para baixo e para cima a encherem as redes para serem içadas para a traineira, eu a vê-los descarregar aquela verdura toda no cais, interrogando-me como seria o fundo do mar, floresta imensa que nunca se esgotava, pois que todos os dias vinham sempre os mesmos mergulhadores, as mesmas traineiras a deitar por fora.

Na areia da baía as fiadas de barracas, lona de riscas coloridas, remendos equivocados, telhados em bico, senhoras compostas à sombra dos avançados, meninos a jogar ao prego, ao mata, ao ringue e à bola, à espera da digestão e do banho do meio-dia. Criadas fardadas a trazerem o almoço em cestos com panos brancos, a D. Natália com a caixa verde à cabeça e dentro da caixa fatias de pão-de-ló de Alfeizerão, e outra de que não me lembro o nome com uma caixa não verde mas vermelha, lá dentro bolacha americana, batatas fritas em saquinhos de plástico gordurosos, tremoços, amendoins e pevides, varizes nas pernas tisnadas do sol, cansadas de caminhar o areal vezes sem conta.

Nós do lado menos bem da praia, mas também não na ponta pior, digamos que a meio, pois embora as barracas fossem iguais, a areia a mesma e a água do mar igualmente barrenta, dum lado as pessoas tinham nomes muito compridos e alcunhas como Bibá, Bábá, Bébé, e do outro os nomes já só Manel e Zé e apelidos dois, no máximo três e isso, parecendo que não, fazia toda a diferença.

Pois nós do lado menos bem da praia, mas também não na ponta pior, digamos que a meio, a minha tia solteira que nunca usou calças nem fato de banho sentada no fundo da barraca com medo que lhe vissem as pernas do joelho para baixo, o meu avô de cabeleira branca, camisa e calças de linho a dormitar na cadeira, a minha mãe e a minha avó compostas à sombra do avançado, eu a fazer esculturas na areia e a vê-las desaparecer com a subida da maré, ao fim da tarde o meu pai de calções, camisa de mangas curtas e panamá, que nos vinha buscar depois de passar o dia sentado num banquinho do cais a coleccionar peixinhos minúsculos que exploravam o balde em eternos círculos até que ele os deitasse a mar.

outubro 12, 2006

Caetano

Fui ouvir o Caetano ao CCB, o vento enrodilhado nos cabelos da plateia, ombros de damas arrepiados, maridos solícitos a despir casacos, a pôr o braço por cima, a ursa maior num rectângulo de céu a adivinhar gaivotas melómanas, as vozes em coro a obedecer ao ritmo que vem do palco, e todos cucurucucu paloma, e todos terra terra por mais distante o errante navegante quem jamais te esqueceria, e a voz, de contratenor para baixo num ai, as palavras que pensava esquecidas e afinal me saem da boca como se não viesse dizendo outra coisa, tenho outra vez 15 anos, tenho outra vez 20 e 30 e menino do rio calor que provoca arrepio, e todos gostamos muito de você, leãozinho e que querem, continuo a gostar do Caetano, dos caracóis negros agora mais curtos e brancos e da voz sempre tão doce.


outubro 11, 2006

Deixa-me sonhar, amor
Que os teus olhos mergulham nos meus
Que os meus dedos embaraçam os teus cabelos
Que subitamente te arrepias
E sorris para mim

Deixa-me sonhar, amor
Que bebes da minha água e comes do meu pão
Que os meus dedos desenham os teus lábios
Que tranquilamente te delicias
E sorris para mim

Deixa-me sonhar, amor
Que as tuas mãos procuram as minhas
Que me tocas e a minha pele te reconhece
Que suavemente me acaricias
E sorris para mim

Deixa-me sonhar amor
Que em meus ouvidos murmuras doçuras
Que me envolves em teus braços e me alivias cansaços
Que lentamente me inebrias
E sorris para mim

Deixa-me sonhar amor
E sorrir para ti

outubro 08, 2006

Feira de Maio





















Ontem à noite Feira de Maio na Azambuja.

Calor. Areia que cobre as ruas. Mantas, flores e cabeças de touro nas varandas, portas entaipadas, tasquinhas, sardinhas, febras, tremoços, sangria, cerveja.

Grupos de pessoas unidas por t-shirts que identificam a sua tertúlia. Encontro a minha num terraço por cima dumas escadas atrás duma pequena tronqueira. Sardinhas, febras, sangria, cerveja, fatias de pão, pratos e copos de plástico.

Nos altifalantes uma voz feminina vende as facilidades da terra, a livraria, a farmácia, a drogaria, o lugar da fruta, o minimercado.

Primeiro foguete e passam os campinos a cavalo, três à frente, três atrás, no meio os touros acompanham o galope. Segundo foguete e lá vêm dois touros, a turba ulula quando se fecham as tronqueiras deixando cada animal confinado a um troço de rua, olhar assustado de espanto de quem não percebe o que faz ali. Seis touros, seis troços de rua, seis cenários de Ribatejo marialva.

Tenho pena do bicho que a sorte me ditou e anseio que alguns dos bêbados que o provocam com chapéus-de-chuva e panos coloridos leve uma cornada que o deixe em trajes menores sobre a areia, como me contaram que aconteceu na véspera. Mas este touro é manso e está assustado. Desço as escadas, encavalito-me na tronqueira e sinto o frisson quando os 500 kg trotam direitos a mim em resposta a alguma mais forte provocação ali ao lado. E é assim até à meia-noite.

Depois, toda a gente vem para a rua e percorrem-se as várias tertúlias: "O Pátio do Ferreiro", "Toiros e Fado", "Cantinho dos Tresmalhados", outra vez sardinhas, febras, tremoços, sangria, cerveja, música pimba alta de mais. Aguento o Portugal profundo até às duas da manhã, deixo os amigos que ficam até fechar a festa quando o sol se levantar, e parto para Lisboa com três amigas sonolentas.

Faço de táxi, distribuo as meninas e chego a casa às três. Luzes acesas, um filme na televisão, um adolescente adormecido, renitente em trocar o sofá pela cama.

Toda eu cheiro a sardinhas, a febras, a sangria e a cerveja. Tomo um duche e deito-me a pensar no país que temos e esperando que os seis touros já estejam no conforto da lezíria, a cheirar a erva.




De manhã acordo, dou meia dúzia de passos e enfio os pés nus na areia ainda fresca da noite. Mais vinte passos e a praia toda só para mim e para os apanhadores de conquilhas. Dois barcos lentamente no arrasto da maré vazia, para a direita e para a esquerda, para a esquerda e para a direita, em contraluz do sol das 7.

Molho os pés e a água está morna, lisa e transparente. Avanço, mergulho e a doçura líquida envolve todo o meu corpo como uma carícia. Nado o mais longe que posso, viro-me para trás e os apanhadores de conquilhas agora pequeninos abanam os crivos, separam as grandes das médias, deixam as pequenas para que a maré as leve. Piam as gaivotas e as andorinhas do mar, a água cheira a peixe fresco. Flutuo de olhos fechados, leve sinto o sol que começa a aquecer a minha cara e apetece-me ficar assim muito tempo, sem peso, sem pesos, sem nada que me mace, cabeça vazia, só sensações, a água que me abraça, o sol que me beija, nos meus ouvidos o canto dos pássaros, o mar a desfalecer na praia.

Volto para terra, a areia faz-me cócegas nos pés no regresso a casa, o gato recebe-me roçando as minhas pernas molhadas, seco-me, enfio-me de novo na cama, fecho os olhos e sonho com estrelas-do-mar.

outubro 07, 2006

varanda sobre o rio

Da minha varanda vê-se o rio. Velas brancas, cacilheiros, rastos de sonhos e de cansaços que atravessam o estuário e ao de leve arranham a água e logo se desvanecem. A ponte deixa-se entrever por entre os telhados, e eu sei que leva gente para o outro lado, que de lá vê as mesmas velas, os mesmos cacilheiros, a minha cidade ao contrário, de lá para cá e não de cá para lá.

Às vezes a bruma sobe pelo rio e o outro lado desaparece. A Arrábida desponta sobre as nuvens como uma ilha e então, é como se todo o mar se abrisse nos meus olhos. Quando a lua é cheia e o rio calmo, sento-me na minha varanda e vejo o reflexo na água do rio. À noite os barcos dormem pachorrentos nos cais e não há velas nem cacilheiros a rasgar o rio, a riscar o reflexo perfeito da lua que brilha como se fosse só para mim. Lembro-me doutras águas, doutros reflexos, uma falésia cor de barro sobre o mar chão do Algarve nos fins de tarde dos Verões da minha juventude, o motor do barco a ronronar baixinho, o chap-chap da água no casco, as gaivotas a piar como loucas, as andorinhas do mar em volteios a rasar a água, o cheiro a mar, o gosto a sal na pele, seca de tanto mar.