Ele chegou já perto do fim do dia, como fazia quase sempre. Gostava da praia àquela hora, com o sol quase a pôr-se mas ainda capaz de aquecer a pele, as famílias a arrumarem os chapéus, as toalhas e as lancheiras, o areal cada vez mais vazio de pessoas, trocadas pelas gaivotas que procuravam algo com que matar a fome. Com frequência era a hora em que começava a soprar um vento quente e em que o mar se tornava mais apetecível. Sentou-se na areia morna, descalçou os sapatos e enterrou os pés. Ficou assim durante algum tempo a olhar as ondas que se repetiam no mar, cinco pequenas duas grandes, é o que dizem, mas nem sempre era assim, já o constatara vezes sem conta, sem perceber muito bem se estava desencontrado do ritmo ou se eram as ondas que se enganavam.
Foi nessa altura que a viu. Vinha descalça, com os cabelos e o vestido de algodão branco a esvoaçarem ao vento. Chamou-lhe a atenção, pois parecia desesperadamente procurar algo que não encontrava. Levantava espreguiçadeiras, espreitava por baixo das canoas e gaivotas de aluguer, perto dos toldos, abria as tampas das papeleiras, inclinava-se junto à beira-mar naquela linha de algas e conchas que a maré deixa quando baixa, remexia com o pé, dava mais uns passos, voltava a olhar em todas as direcções e continuava. Ela aproximou-se mais um pouco. Era bonita e balançava as ancas quando caminhava como se dançasse. Nessa altura, os seus olhares cruzaram-se, ele esboçou um sorriso, ela fez um ar intrigado, aproximou-se mais e falou assim, sem mais introduções:
- faz lá isso outra vez, por favor
- o quê?
- esse sorriso
Ele sorriu de novo e ela fez um ar desapontado:
- é parecido mas não é o que procuro
- e o que procuras?
- procuro um sorriso.
- um sorriso? Dentro das papeleiras, no meio das algas?
- Já vi que não me podes ajudar, disse ela, não percebes nada de sorrisos. Um sorriso encontra-se normalmente onde menos se espera.
Ele reflectiu um pouco e pensou que a afirmação dela não era totalmente desprovida de senso. Resolveu ajudá-la embora não estivesse muito bem a ver como.
- Então conta lá como é esse sorriso. Tenho tempo e nada para fazer. Posso ajudar-te se quiseres.
Ela mirou-o levantando uma sobrancelha, fazendo um ar admirado e torcendo o nariz, o que dava ao seu rosto uma expressão engraçada, de que ele gostou.
- Bom, o sorriso que procuro é o meu. Vim aqui há uns dias, na altura não dei pela falta, mas quando cheguei a casa reparei que já não o tinha comigo. Ainda pensei que tivesse saído sem ele, procurei em todos os armários e gavetas, em todas as malas, na despensa, na casa de banho, até no frigorífico e nada.
Mesmo no espelho, lugar mais óbvio para se perderem sorrisos, eu procurei. Depois lembrei-me que a última vez que o usara tinha sido aqui. Só pode ter ficado cá.
- Está bem, disse ele e levantou-se. – Vamos lá procurar esse sorriso. Tens é de me explicar como é.
- Bom é um sorriso fácil, espontâneo e que encaixa bem na minha boca. Até agora nunca o tinha perdido. Não percebo o que aconteceu…
- Pois eu acho que a forma como o perdeste pouco interessa agora. O importante mesmo é encontrá-lo e pô-lo no sítio de novo.
E assim caminharam os dois pela praia, procurando aqui e ali e conversando pelo caminho. O sol entretanto pusera-se, a praia estava deserta e a lua começava a nascer reflectindo-se na água. O tempo foi passando sem que dessem por isso, trocaram pensamentos e memórias, foram-se aproximando em corpo e em alma e descobrindo aos poucos que há muito que se procuravam. Quando começou a esfriar um pouco, juntaram uns gravetos, pauzinhos, restos de madeira que o mar sempre oferece à praia e fizeram uma fogueira. Sentaram-se juntinhos e conversaram toda a noite, já esquecidos da procura do sorriso dela. Ao amanhecer, quando o sol começou a aquecer e a praia ainda era só deles, despiram-se e entraram no mar. A água estava morna e envolveu-lhes os corpos como um manto. Ele abraçou-a de mansinho, ela aconchegou-se, olharam-se nos olhos e neles viram o seu passado, o seu presente e o seu futuro. Ele beijou-lhe a testa, ela sorriu e disse:
- Vês, eu sabia que tinha perdido o sorriso nesta praia. Já o encontrei.
novembro 11, 2006
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