dezembro 13, 2006

A bolsa

Da minha mesa habitual do pequeno-almoço, vejo-a subir a rua.

Calças brancas bem justas de cintura descaída, camisola preta cintada, botas e cinto da mesma cor, as botas de cano alto por fora das calças, o cinto largo com estrelinhas de metal, bolsinha debaixo do sovaco, parece ignorar os 7º matinais.

Entra no café e BOM DIA! O estabelecimento não justifica tantos decibéis, um balcão e 3 mesinhas, mas ela detesta passar despercebida. Senta-se de perninha cruzada, tronco serpenteante, pousa a bolsinha e SR. ARMANDO ERA UM CAFÉ SE FAZ FAVOR.

Eu levanto o sobrolho detrás do meu jornal, a velha dos sudokus dá mais uma passa, apaga um 3, prefere um 5, hesita, rói o lápis e acaba por se decidir por um 7. Em suma, não lhe liga peva.

Ela não se deixa impressionar pela indiferença dos circunstantes, dedinho espetado na asa da chávena e ESTA ZONA AQUI É MUITO PERIGOSA, NÂO É? Ausência de respostas e IMAGINEM QUE NA SEXTA-FEIRA FUI ASSALTADA ALI DEFRONTE DO MEU SALÃO. Aqui marcou pontos. Eu e a velha dos sudokus levantámos as cabeças o que lhe deu alento para POIS ESTAVA ALI À ESPERA DE TAXI E LEVARAM-ME A BOLSA. Mas onde?, mas como?, pergunta a Graciete empregada de mesa. ESTAVA ALI NA RUA COM UMA BOLSA IGUAL A ESTA DEBAIXO DO BRAÇO, ASSIM, levanta-se e exemplifica, E VIERAM UNS NUMA MOTA E LEVARAM-ME A BOLSA.

Pois, nesse preparo estavas mesmo a pedi-las, digo eu para o meu jornal, quem é que se lembra de se por no meio da estrada de corpinho bem feito com uma bolsinha ensovacada?

A velha dos sudokus tartamudeia qualquer coisa que não percebo e POIS EU ACHO ESTA ZONA MUITO PERIGOSA. ALI A D. ETELVINA MELLO, vira-se para mim e CONHECE? abano a cabeça, UMA SENHORA TAMBÉM VELHOTA, pata na poça, repara na velha dos sudokus e acrescenta PARA AÍ COM 91 ANOS, QUE ANDA SEMPRE COM UMA CRIADA FARDADA, para mim outra vez, MAS NÃO CONHECE???, bolas, não, abano de novo a cabeça, JÁ FOI ASSALTADA 3 VEZES, POIS FOI. OLHE, EU ATÉ VOU CONTRATAR SEGURANÇA PARA O MEU SALÃO. E NA SEXTA-FEIRA ESTIVE MESMO PARA CHAMAR A POLÍCIA. SÓ NÃO CHAMEI PORQUE NO DIA SEGUINTE VINHA LOGO NOS JORNAIS TODOS QUE EU TINHA SIDO ASSALTADA, AH POIS VINHA, POR ISSO NÃO CHAMEI, QUE EU NÃO QUERIA ESTA HISTÓRIA NOS JORNAIS. De referir que a mulher, efectivamente, penteia metade do jetset.

E para mim outra vez MAS NÃO ACHA ESTA ZONA PERIGOSA? Eu lá respondo com um não, não acho, aliás passeio o meu cão muitas vezes à 1 ou 2 da manhã e nunca tive qualquer problema. AI SIM? POIS OLHE, EU, TINHA MEDO. Não sei que responder e rebolo os olhos detrás do meu jornal.
SR. ARMANDO, A MINHA CONTA SE FAZ FAVOR. ENTÃO BOM DIA.

Olho pela vitrina, vejo-a a descer a rua rebolando as ancas, de bolsinha debaixo do braço, segura de que todos a olham e digo ao meu jornal: não tarda, levam-lhe a bela da bolsa outra vez.

Retorno à leitura das notícias do dia, no silêncio agora pacato do café, onde se ouve apenas o riscar do lápis e o safa safa da borracha no livrinho dos sudokus.

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