dezembro 31, 2006

princípio, meio, fim

Assim como há dias vazios nas nossas vidas, há outros em que uma série de pequenas coisas, aparentemente sem qualquer relação umas com as outras, se interligam nas nossas cabeças, juntando-se num todo que parece trazer um outro significado à existência.

Ontem levei o meu cão comigo para o trabalho, coisa que raramente faço, deixei-o um pouco à solta na área de estacionamento e depósito de materiais diversos que circunda o edifício, esperando que ele depois viesse ter comigo. Como qualquer rafeiro manhoso, o animal é esperto. Eu é que vou perdendo qualidades e bom, nunca mais me lembrei dele a não ser quando, chegada a casa para almoçar com o meu filho, reparei que me faltava o bicho. Voltámos para trás, o miúdo numa aflição, prevendo a irremediável perda do cão que ele imaginava já em Algés, eu a tranquilizá-lo com os porteiros que vigiam o portão de entrada no recinto, mas também com o coração pequenino. Chegados ao local do crime e indagados os porteiros: “os senhores viram o meu cão?”, tranquilizou-nos a resposta breve: “Andou por aí a manhã toda atrás duma cadela. Está lá para trás”. Suspiro de alívio, lá rolámos devagarinho, até que o vimos ao fundo mais a bicha, os dois com um ar culpado mas satisfeito. Apanhá-lo foi um desassossego. Para a frente, para trás, inversão de marcha pelo meio de restos de candeeiros e bancos de jardim, chamá-lo era o mesmo que falar com uma porta, a solução foi o meu filho correr atrás dele e pegá-lo ao colo. Vinha suado, sujo, ofegante, com o pelo todo enrodilhado e um inegável sorriso. Tinha perdido a virgindade.

Chegada a casa deparo-me com uma cena de filme. Dois homens de fato e gravata pretos transportavam para fora do prédio e dentro de uma espécie de saco-cama cinzento plastificado algo que só podia ser um corpo. Percebi que era a velha do 4º Dto, quando me cruzei mais tarde no elevador com a filha e o genro, de ar enlutado e pesaroso. A morte dos velhos faz parte da ordem natural das coisas, mas mesmo assim fiquei abatida. Ainda há dois dias tinha visto a senhora, aprumadíssima como sempre, revelando por trás das rugas e da pintura discreta, um rosto que devia ter sido belíssimo na juventude. Agora, tinha perdido a vida.

À noite, respondendo ao apelo de uma amiga, fui a uma discoteca de música africana. Gosto destes sítios onde impera uma certa descontracção, onde a sensualidade da música convida à dança, desconhecidos nos convidam para uma morna ou um funáná e, de par em par e com umas caipirinhas pelo meio vamos desapertando as grilhetas que nos amarram a formas de vida estereotipadas, esquecendo as preocupações, tristezas e trapalhadas da vida que construímos tantas vezes apenas no nosso imaginário. Saí de lá com a certeza que a vida é tão sagrada que não podemos perder um minuto que seja a vivê-la mal vivida.

Foi assim este dia: um princípio, um fim e um meio, que me fizeram pensar que não é preciso esperar pelo dia 1 de Janeiro para fazer uma lista de “objectivos a cumprir no novo ano”. Todos os dias podem ser o início de um novo ano, dias de mudança. Mudança para uma vida vivida com alegria, fazendo por soltar as amarras das coisas que nos entristecem e partir em frente como um barco que ligeiro abandona o cais sem saber se algum dia voltará ao mesmo porto, liberto da carga que quase o afundava.

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