A minha avó, mãe da minha mãe, faria hoje 110 anos se fosse viva.
Chamava-se Virgínia Laura, a minha avó. Acho que era um nome bonito. Quando eu era pequena ia passar o mês de Setembro a casa da minha avó numa vila sem interesse entre Leiria e Tomar. A casa era numa rua tranquila de moradias em banda com dois pisos e um pequeno quintalinho atrás.
No quintal havia galinhas, coelhos, couves e uma ameixeira.
Nunca ouvi a minha avó gritar, ralhar ou queixar-se do que quer que fosse, por isso, quando de repente adoeceu a meio das férias de verão aos setenta e poucos anos e morreu passados quinze dias deixou-nos a todos mudos de espanto e a mim, que tinha uns 12 ou 13 anos, com um peso de remorso que ainda hoje carrego comigo por não ter querido acompanhar os meus pais a meio de Agosto quando a foram ver ao hospital e eu preferi ficar na praia. Morreu sem avisar passados poucos dias.
O meu avô, que era o doente oficial daquela casa e sempre foi apaparicado por mulher e filhas, morreu a dormir passados uns quinze anos, quando já andava a procurar bengalas na panela da sopa e a conversar tardes inteiras com a minha mãe convencido de que ela era o Sr. Andrade. Numa dessas tardes, quando uma das minhas tias o tratou por pai, respondeu: Pai? a senhora desculpe, mas se diz que é minha filha, eu não a conheço como tal. Pelo menos como filha da minha mulher. Só se for de alguma criada.
Pois. A minha avó nunca se queixou de nada, mas foi nessa altura que percebemos por que motivo volta não volta ela despedia criadas (coitadas) sem razão aparente. O meu avô chamava-lhe pombinha branca. Lá tinha as suas razões.
Desses fins de verão em casa da minha avó ficaram-me para sempre:
- O meu avô a comer bacalhau com batatas a nadar em azeite com um grande avental para não pingar a roupa.
- a minha tia solteira e já nessa altura meio maluca, com quem eu dormia e que punha bigodis no cabelo e creme nas mãos com umas meias por cima, a dizer-me: ouviste? passos lá em cima... e eu borrada de medo, pois lá em cima não era suposto estar alguém à noite.
- uma galinha a saltar o muro do quintal a esguichar sangue do pescoço depois de lhe cortarem a cabeça.
- o cheiro das couves com farinha que a minha tia picava para as galinhas.
- a minha avó a rezar o terço das sete em sintonia com a telefonia.
- umas imagens da igreja que andavam de casa em casa, ficando alguns dias em cada uma, e que tinham de estar sempre alumiadas com uma lamparina de azeite.
- o tchctchctchc da máquina de costura no andar de cima quando a costureira lá ia voltar colarinhos e pregar rendas nos lençois enquanto conversava coma a minha tia que queria saber o que se passava nas outras casas onde ela trabalhava.
- uma velha muito velha que cheirava a naftalina e ia lá a casa lanchar às quintas-feiras, viúva de um homem rico, mas tão forreta que já só tinha a dentadura de cima, sendo explicação lá em casa que os ratos lhe tinham roído a de baixo.
- a minha avó a descascar maçãs pequeninas e perfumadas para mim e para os meus primos, todos sentados nos degrauzinhos da entrada a apanhar os raios de sol que passavam pelos postigos da porta.
Chamava-se Virgínia Laura, a minha avó. Acho que era um nome bonito. Quando eu era pequena ia passar o mês de Setembro a casa da minha avó numa vila sem interesse entre Leiria e Tomar. A casa era numa rua tranquila de moradias em banda com dois pisos e um pequeno quintalinho atrás.
No quintal havia galinhas, coelhos, couves e uma ameixeira.
Nunca ouvi a minha avó gritar, ralhar ou queixar-se do que quer que fosse, por isso, quando de repente adoeceu a meio das férias de verão aos setenta e poucos anos e morreu passados quinze dias deixou-nos a todos mudos de espanto e a mim, que tinha uns 12 ou 13 anos, com um peso de remorso que ainda hoje carrego comigo por não ter querido acompanhar os meus pais a meio de Agosto quando a foram ver ao hospital e eu preferi ficar na praia. Morreu sem avisar passados poucos dias.
O meu avô, que era o doente oficial daquela casa e sempre foi apaparicado por mulher e filhas, morreu a dormir passados uns quinze anos, quando já andava a procurar bengalas na panela da sopa e a conversar tardes inteiras com a minha mãe convencido de que ela era o Sr. Andrade. Numa dessas tardes, quando uma das minhas tias o tratou por pai, respondeu: Pai? a senhora desculpe, mas se diz que é minha filha, eu não a conheço como tal. Pelo menos como filha da minha mulher. Só se for de alguma criada.
Pois. A minha avó nunca se queixou de nada, mas foi nessa altura que percebemos por que motivo volta não volta ela despedia criadas (coitadas) sem razão aparente. O meu avô chamava-lhe pombinha branca. Lá tinha as suas razões.
Desses fins de verão em casa da minha avó ficaram-me para sempre:
- O meu avô a comer bacalhau com batatas a nadar em azeite com um grande avental para não pingar a roupa.
- a minha tia solteira e já nessa altura meio maluca, com quem eu dormia e que punha bigodis no cabelo e creme nas mãos com umas meias por cima, a dizer-me: ouviste? passos lá em cima... e eu borrada de medo, pois lá em cima não era suposto estar alguém à noite.
- uma galinha a saltar o muro do quintal a esguichar sangue do pescoço depois de lhe cortarem a cabeça.
- o cheiro das couves com farinha que a minha tia picava para as galinhas.
- a minha avó a rezar o terço das sete em sintonia com a telefonia.
- umas imagens da igreja que andavam de casa em casa, ficando alguns dias em cada uma, e que tinham de estar sempre alumiadas com uma lamparina de azeite.
- o tchctchctchc da máquina de costura no andar de cima quando a costureira lá ia voltar colarinhos e pregar rendas nos lençois enquanto conversava coma a minha tia que queria saber o que se passava nas outras casas onde ela trabalhava.
- uma velha muito velha que cheirava a naftalina e ia lá a casa lanchar às quintas-feiras, viúva de um homem rico, mas tão forreta que já só tinha a dentadura de cima, sendo explicação lá em casa que os ratos lhe tinham roído a de baixo.
- a minha avó a descascar maçãs pequeninas e perfumadas para mim e para os meus primos, todos sentados nos degrauzinhos da entrada a apanhar os raios de sol que passavam pelos postigos da porta.
9 comentários:
Este post é uma delícia, ainda que seja uma antevisão das demências da nova era a que todos estamos sujeitos.
A procura das bengalas na panela da sopa e as filhas das criadas, 5*.
Um beijinho pelo dia dela, e outro pelo teu. :)
Pedro.
Obrigada, Pedros!
beijos para vocês também
uma memória feita de cheiros que aqui consegui sentir! Juro! :)
Beijinho Cara TCL .. pelo dia :)
Parabéns. Pela Avó, pelas Memórias deste post e pelo dia de hoje.
Obriga Once, obrigada Zé SC.
Beijos para vocês também
Muitos parabéns aqui no blog, já agora! Mas já tos dei a tempo e horas, não dei? Ora diz lá que sim, para não dizerem que eu sou malcriada...
E ainda te deixo um presentinho lá no Porta (eu sei que não gostas muito destas coisas, mas o que é que queres?...)
beijos
deste pois, Ana!
E ainda ninguém disse que este post faz lembrar a Isabel Allende e a sua "Casa dos Espíritos"?
Quando eu for grande, quero escrever assim. Parabéns!
Beijo
Enviar um comentário