...ocupava todo um canto da sala. Por finais de Novembro, o meu pai afastava móveis e estantes do seu poiso habitual, fazia altura com mesas, cadeiras, arcas e caixotes que depois cobria com mantas e papel de cenário forrado com barro e gesso e assim criava o esqueleto daquela paisagem inventada todos os Natais da minha infância.
Construir o presépio demorava pelo menos umas duas semanas, em que a minha mãe e a criada reviravam os olhos e suspiravam sem entenderem muito bem que gozo nos dava produzir tanto lixo e ter aquela trabalheira toda para uma coisa que se ia desmanchar dali a um mês. O canto da sala aos poucos ia ganhando formas de montanhas escarpadas e vales verdejantes por onde serpenteavam riachos graças a dois alguidares estrategicamente escondidos, um na parte de cima de onde saía a água e outro por baixo dos caixotes, que a recolhia. As montanhas eram pintadas imitando rochedos, os vales cobertos de musgo fresco que íamos apanhar no fim-de-semana e musgo seco do ano anterior que tinha sido guardado dentro de caixas de sapatos embrulhado em folhas de jornal. Quando o musgo não chegava e para aumentar a paleta de cores do presépio, tingíamos serradura com anilinas castanhas e verdes que espalhávamos por colinas e vales. Ainda hoje guardo na memória aquele cheiro de musgo e serradura húmida que perdurava pela casa durante todo o mês de Dezembro.
Quando toda a paisagem estava pronta havia que povoá-la. As figuras básicas do presépio eram as mesmas desde sempre, uma Nossa Senhora ajoelhada vestida de azul, um S. José de barbas negras e cajado na mão, o menino todo nu em cima duma minúscula almofadinha de veludo vermelho, a vaca, o burro e os três reis magos com os seus camelos. A esta gente juntava-se uma imensa população dos tradicionais pastores e ovelhas, que todos os anos se via acrescida de mais alguém que por vezes não tinha nada que ver com esta história, bonecos e figurinhas que se compravam ou que se reciclavam de outras brincadeiras.
Foi assim que o presépio se viu povoado pela Branca de Neve e os sete anões, por uma porca e os seus porquinhos, por gatos, cães, mulheres a lavarem roupa numa poça junto ao ribeiro (um espelhinho com as bordas disfarçadas por baixo do musgo), um D. Quixote e um Sancho Pança, um frade barrigudo, pintos e galinhas, soldadinhos de chumbo, carrinhos, um menino de triciclo, Tom, Jerry, o lobo mau e o Capuchinho Vermelho.
Uma igreja de torre e cruz construída em cartão encimava uma colina e casinhas de cartolina da colecção “arquitectura tradicional portuguesa” que eu comprava na papelaria do Sr. José e ia montando ao longo do ano com paciência, uma tesoura e cola uhu espalhavam-se pela paisagem. Na terra do menino Jesus havia assim um monte alentejano, um moinho do oeste, uma cubata de Angola, uma casa de granito de Trás-os-Montes, uma habitação típica de Timor e tantas outras relembrando-nos a vastidão do império.
O meu pai era agnóstico e anti-fascista mas no presépio nada disso contava. O importante era que fosse grande, um pouco kitsch e nos desse duas semanas de imenso prazer a fazê-lo, outras tantas a contemplá-lo e dois dias a desmontá-lo.
Quando cresci o meu pai deixou-se de presépios e passou a fazer uma árvore de Natal. O cheiro da resina substituiu o do musgo fresco, as luzinhas e bolas coloridas no canto da sala procuravam apagar a lembrança de antigos montes e vales com água a correr. Quando saí de casa dos meus pais nunca mais fiz nenhum presépio. Talvez por descrença, talvez por ter em mim a certeza de que mais valia guardar a memória dos dias de Inverno de então e da infinita ternura do meu pai. Não sei.
Construir o presépio demorava pelo menos umas duas semanas, em que a minha mãe e a criada reviravam os olhos e suspiravam sem entenderem muito bem que gozo nos dava produzir tanto lixo e ter aquela trabalheira toda para uma coisa que se ia desmanchar dali a um mês. O canto da sala aos poucos ia ganhando formas de montanhas escarpadas e vales verdejantes por onde serpenteavam riachos graças a dois alguidares estrategicamente escondidos, um na parte de cima de onde saía a água e outro por baixo dos caixotes, que a recolhia. As montanhas eram pintadas imitando rochedos, os vales cobertos de musgo fresco que íamos apanhar no fim-de-semana e musgo seco do ano anterior que tinha sido guardado dentro de caixas de sapatos embrulhado em folhas de jornal. Quando o musgo não chegava e para aumentar a paleta de cores do presépio, tingíamos serradura com anilinas castanhas e verdes que espalhávamos por colinas e vales. Ainda hoje guardo na memória aquele cheiro de musgo e serradura húmida que perdurava pela casa durante todo o mês de Dezembro.
Quando toda a paisagem estava pronta havia que povoá-la. As figuras básicas do presépio eram as mesmas desde sempre, uma Nossa Senhora ajoelhada vestida de azul, um S. José de barbas negras e cajado na mão, o menino todo nu em cima duma minúscula almofadinha de veludo vermelho, a vaca, o burro e os três reis magos com os seus camelos. A esta gente juntava-se uma imensa população dos tradicionais pastores e ovelhas, que todos os anos se via acrescida de mais alguém que por vezes não tinha nada que ver com esta história, bonecos e figurinhas que se compravam ou que se reciclavam de outras brincadeiras.
Foi assim que o presépio se viu povoado pela Branca de Neve e os sete anões, por uma porca e os seus porquinhos, por gatos, cães, mulheres a lavarem roupa numa poça junto ao ribeiro (um espelhinho com as bordas disfarçadas por baixo do musgo), um D. Quixote e um Sancho Pança, um frade barrigudo, pintos e galinhas, soldadinhos de chumbo, carrinhos, um menino de triciclo, Tom, Jerry, o lobo mau e o Capuchinho Vermelho.
Uma igreja de torre e cruz construída em cartão encimava uma colina e casinhas de cartolina da colecção “arquitectura tradicional portuguesa” que eu comprava na papelaria do Sr. José e ia montando ao longo do ano com paciência, uma tesoura e cola uhu espalhavam-se pela paisagem. Na terra do menino Jesus havia assim um monte alentejano, um moinho do oeste, uma cubata de Angola, uma casa de granito de Trás-os-Montes, uma habitação típica de Timor e tantas outras relembrando-nos a vastidão do império.
O meu pai era agnóstico e anti-fascista mas no presépio nada disso contava. O importante era que fosse grande, um pouco kitsch e nos desse duas semanas de imenso prazer a fazê-lo, outras tantas a contemplá-lo e dois dias a desmontá-lo.
Quando cresci o meu pai deixou-se de presépios e passou a fazer uma árvore de Natal. O cheiro da resina substituiu o do musgo fresco, as luzinhas e bolas coloridas no canto da sala procuravam apagar a lembrança de antigos montes e vales com água a correr. Quando saí de casa dos meus pais nunca mais fiz nenhum presépio. Talvez por descrença, talvez por ter em mim a certeza de que mais valia guardar a memória dos dias de Inverno de então e da infinita ternura do meu pai. Não sei.
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