Não sei como vim parar a este sítio, a esta casa com o jardinzinho à volta, no meu quarto outra cama ao lado da minha onde dorme uma velha que não conheço, que nunca vi antes, todas as noites ali ao meu lado a fazer barulhinhos esquisitos enquanto dorme, sei que se chama Otília porque de manhã a menina de bata branca que nos vem abrir as cortinas da janela lhe diz
então, D. Otília, vamos levantar e fazer o nosso xixizinho?,
e para mim
e a minha querida, dormiu bem? A seguir já trato de si.
Não lhe respondo, tal como não respondo a ninguém, há tempos que decidi que não falava mais, para quê, se ninguém entende o que digo, eu a contar coisas importantes que me tinham acontecido, a boneca que ficara sem um braço, a Alice que me tinha puxado as tranças na escola, o primo Gilberto que me chamava para trás do celeiro em casa dos meus avós, me pedia para levantar as saias e ficava a mirar as minhas pernas com um olhar estranho, pois eu a contar estas coisas e os meus filhos a trocarem olhares com ar de caso, os filhos dos meus filhos
Não lhe respondo, tal como não respondo a ninguém, há tempos que decidi que não falava mais, para quê, se ninguém entende o que digo, eu a contar coisas importantes que me tinham acontecido, a boneca que ficara sem um braço, a Alice que me tinha puxado as tranças na escola, o primo Gilberto que me chamava para trás do celeiro em casa dos meus avós, me pedia para levantar as saias e ficava a mirar as minhas pernas com um olhar estranho, pois eu a contar estas coisas e os meus filhos a trocarem olhares com ar de caso, os filhos dos meus filhos
ó mãe, a avó já não diz coisa com coisa, não pode estar assim sozinha em casa,
e eu cheia de pressa para sair e devolver “Os Desastres de Sofia” à Clotilde que era filha do dono da farmácia e tinha livros, bonecas de loiça, um cãozinho de corda e outras maravilhas, e de caminho passar em casa da tia Marquinhas para trazer o pão, e a minha filha
ó mãe sossegue, já não está na terra, está aqui connosco em Lisboa, a tia Marquinhas já morreu há mais de 20 anos, a Clotilde em Maio passado, deixe-se estar aí sentadinha, vá lá,
e eu que combinei jogar às escondidas no largo da Igreja antes da escola e se chego atrasada a Alice puxa-me as tranças outra vez, e não me posso esquecer da sacola com a lousa e o giz, pois se não levo tudo direitinho, a professora dá-me com a régua nas mãos.
Pois como nunca ninguém percebia nada do que eu contava, fechei-me em copas e resolvi que não dizia mais nada e se calhar foi por isso que vim aqui parar a esta casa com um jardinzinho à volta, uma velha na cama ao lado da minha chamada Otília mas que eu não conheço, e um espelho no quarto que deve estar estragado, porque quando olho para ele não vejo uma menina de bochechas rosadas e tranças, mas sim uma velha de cabelos brancos e olhar perdido a fitar-me com a minha boneca nos braços como se fosse dela.
Pois como nunca ninguém percebia nada do que eu contava, fechei-me em copas e resolvi que não dizia mais nada e se calhar foi por isso que vim aqui parar a esta casa com um jardinzinho à volta, uma velha na cama ao lado da minha chamada Otília mas que eu não conheço, e um espelho no quarto que deve estar estragado, porque quando olho para ele não vejo uma menina de bochechas rosadas e tranças, mas sim uma velha de cabelos brancos e olhar perdido a fitar-me com a minha boneca nos braços como se fosse dela.
2 comentários:
Adorei este texto.
Dos melhores que já escreveste.
O enredo, o conteúdo, o significado, está tudo lá.
Muito estilo Lobo Antunes (quer queiras quer não).
Muito bem conseguido.
Assim vale a pena ler.
Obrigada pelo comentário Pedro.
E quem me dera ter um cagagésimo do talento do ALB... Mas "estilo LA" já é bem bom!
Volta sempre.
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