Ontem levei o meu cão comigo para o trabalho, coisa que raramente faço, deixei-o um pouco à solta na área de estacionamento e depósito de materiais diversos que circunda o edifício, esperando que ele depois viesse ter comigo. Como qualquer rafeiro manhoso, o animal é esperto. Eu é que vou perdendo qualidades e bom, nunca mais me lembrei dele a não ser quando, chegada a casa para almoçar com o meu filho, reparei que me faltava o bicho. Voltámos para trás, o miúdo numa aflição, prevendo a irremediável perda do cão que ele imaginava já em Algés, eu a tranquilizá-lo com os porteiros que vigiam o portão de entrada no recinto, mas também com o coração pequenino. Chegados ao local do crime e indagados os porteiros: “os senhores viram o meu cão?”, tranquilizou-nos a resposta breve: “Andou por aí a manhã toda atrás duma cadela. Está lá para trás”. Suspiro de alívio, lá rolámos devagarinho, até que o vimos ao fundo mais a bicha, os dois com um ar culpado mas satisfeito. Apanhá-lo foi um desassossego. Para a frente, para trás, inversão de marcha pelo meio de restos de candeeiros e bancos de jardim, chamá-lo era o mesmo que falar com uma porta, a solução foi o meu filho correr atrás dele e pegá-lo ao colo. Vinha suado, sujo, ofegante, com o pelo todo enrodilhado e um inegável sorriso. Tinha perdido a virgindade.
Chegada a casa deparo-me com uma cena de filme. Dois homens de fato e gravata pretos transportavam para fora do prédio e dentro de uma espécie de saco-cama cinzento plastificado algo que só podia ser um corpo. Percebi que era a velha do 4º Dto, quando me cruzei mais tarde no elevador com a filha e o genro, de ar enlutado e pesaroso. A morte dos velhos faz parte da ordem natural das coisas, mas mesmo assim fiquei abatida. Ainda há dois dias tinha visto a senhora, aprumadíssima como sempre, revelando por trás das rugas e da pintura discreta, um rosto que devia ter sido belíssimo na juventude. Agora, tinha perdido a vida.
À noite, respondendo ao apelo de uma amiga, fui a uma discoteca de música africana. Gosto destes sítios onde impera uma certa descontracção, onde a sensualidade da música convida à dança, desconhecidos nos convidam para uma morna ou um funáná e, de par em par e com umas caipirinhas pelo meio vamos desapertando as grilhetas que nos amarram a formas de vida estereotipadas, esquecendo as preocupações, tristezas e trapalhadas da vida que construímos tantas vezes apenas no nosso imaginário. Saí de lá com a certeza que a vida é tão sagrada que não podemos perder um minuto que seja a vivê-la mal vivida.
Foi assim este dia: um princípio, um fim e um meio, que me fizeram pensar que não é preciso esperar pelo dia 1 de Janeiro para fazer uma lista de “objectivos a cumprir no novo ano”. Todos os dias podem ser o início de um novo ano, dias de mudança. Mudança para uma vida vivida com alegria, fazendo por soltar as amarras das coisas que nos entristecem e partir em frente como um barco que ligeiro abandona o cais sem saber se algum dia voltará ao mesmo porto, liberto da carga que quase o afundava.