Ele aproximou-se dela motivado por um sentimento protector que jamais experimentara antes. Nunca as mulheres o tinham verdadeiramente interessado, exceptuando a mãe com quem sempre vivera. Levava uma vida pacata, de dias iguais como grãos de areia, as novidades no jornal da manhã com o café tomado no sítio de sempre, o autocarro para a repartição, o almoço na cantina, o regresso para o jantar maternal e o sofá onde cabeceava frente ao televisor, antes de recolher ao aconchego dos lençóis. Uma vez por mês atendia às necessidades que a sua masculinidade lhe impunha com uma rapariga que parava pelo Conde Redondo.
Os dias corriam assim sem sobressaltos nem outras precisões até que ela se sentou na secretária do fundo, defronte da máquina de escrever já gasta, num ângulo que colidia com o seu olhar sempre que o levantava dos papeis em que preenchia longas colunas de números.
Ela era pequena e leve e tão branca que se podia ver o sangue a percorrer as veias que levantavam a pele translúcida que o invariável preto dos vestidos realçava. Aos seus olhos ela não andava como toda a gente, mas deslizava suavemente a curta distância do chão como que movida pela simples aragem do virar das páginas dos livros de contabilidade. Diria ele que ela se quebraria ao menor toque e ficaria reduzida a um monte de cacos de fino vidro no chão de linóleo, que ele depois teria de varrer por entre lágrimas do remorso de não a ter segurado a tempo.
Assim se chegou a ela, primeiro seguindo-a à distância certa de uma passada e um braço, depois pondo-se ao lado dela e acompanhando-a onde quer que fosse. Ela aceitou aquela presença com a naturalidade de quem, como ela, passava pela vida sem deixar marcas.
E assim se passaram anos, sem que entre os dois se tivesse trocado uma palavra, um toque ou um olhar, ela cada vez mais leve e transparente, ele segurando-a pelo vestido para que não voasse pois reparara que os seus pés, que dantes mal tocavam o chão, agora deslizavam a uns bons 15 cm de altura.
Num dia em que o vento soprava mais forte e ele a acompanhava a casa, uma rajada súbita e a ponta do vestido que ele segurava delicadamente soltou-se-lhe da mão, deixando-o sozinho no passeio enquanto ela evitava as copas das árvores e começava já a ultrapassar os telhados dos prédios.
Nesse momento em que a viu subindo, de vestido preto ondulando suavemente, percebeu que, se não a seguisse, ficaria como ela, cada vez mais leve e vazio até desaparecer de vez. Esqueceu todas as leis da física, que de qualquer modo nunca tinha aprendido como deve ser, e levantou voo a tempo de a ver passar atrás da torre 3 das Amoreiras em direcção a Sul.
Voaram assim, ela à frente e ele seguindo-a, deixando a cidade para trás, primeiro ao longo do rio, depois por cima de campos verdes e amarelos. Quando já não havia casas, nem animais nem pessoas, ela começou a subir mais em direcção ao céu. Ao longe, bem no alto, ele viu uma porta entreaberta. Sentiu-se em paz. Chegava finalmente a casa.
Texto escrito em resposta ao desafio da Ana, do Porta do Vento.
Os dias corriam assim sem sobressaltos nem outras precisões até que ela se sentou na secretária do fundo, defronte da máquina de escrever já gasta, num ângulo que colidia com o seu olhar sempre que o levantava dos papeis em que preenchia longas colunas de números.
Ela era pequena e leve e tão branca que se podia ver o sangue a percorrer as veias que levantavam a pele translúcida que o invariável preto dos vestidos realçava. Aos seus olhos ela não andava como toda a gente, mas deslizava suavemente a curta distância do chão como que movida pela simples aragem do virar das páginas dos livros de contabilidade. Diria ele que ela se quebraria ao menor toque e ficaria reduzida a um monte de cacos de fino vidro no chão de linóleo, que ele depois teria de varrer por entre lágrimas do remorso de não a ter segurado a tempo.
Assim se chegou a ela, primeiro seguindo-a à distância certa de uma passada e um braço, depois pondo-se ao lado dela e acompanhando-a onde quer que fosse. Ela aceitou aquela presença com a naturalidade de quem, como ela, passava pela vida sem deixar marcas.
E assim se passaram anos, sem que entre os dois se tivesse trocado uma palavra, um toque ou um olhar, ela cada vez mais leve e transparente, ele segurando-a pelo vestido para que não voasse pois reparara que os seus pés, que dantes mal tocavam o chão, agora deslizavam a uns bons 15 cm de altura.
Num dia em que o vento soprava mais forte e ele a acompanhava a casa, uma rajada súbita e a ponta do vestido que ele segurava delicadamente soltou-se-lhe da mão, deixando-o sozinho no passeio enquanto ela evitava as copas das árvores e começava já a ultrapassar os telhados dos prédios.
Nesse momento em que a viu subindo, de vestido preto ondulando suavemente, percebeu que, se não a seguisse, ficaria como ela, cada vez mais leve e vazio até desaparecer de vez. Esqueceu todas as leis da física, que de qualquer modo nunca tinha aprendido como deve ser, e levantou voo a tempo de a ver passar atrás da torre 3 das Amoreiras em direcção a Sul.
Voaram assim, ela à frente e ele seguindo-a, deixando a cidade para trás, primeiro ao longo do rio, depois por cima de campos verdes e amarelos. Quando já não havia casas, nem animais nem pessoas, ela começou a subir mais em direcção ao céu. Ao longe, bem no alto, ele viu uma porta entreaberta. Sentiu-se em paz. Chegava finalmente a casa.
Texto escrito em resposta ao desafio da Ana, do Porta do Vento.
2 comentários:
E ficou muito bem, lá no Porta do Vento!
Beijo
(que tal Marrocos? no próximo fds vou eu, mas para a Tunísia)
Só achei desenquadrada a referência à "torre 3 das Amoreiras"... Para localizar a coisa já bastava o Conde Redondo. Mas está perfeito!...
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