julho 11, 2007

pisco

Foi construindo a casa ao invés do normal, de dentro para fora em vez de fora para dentro e de baixo para cima em vez de cima para baixo.

Protegeu-se da chuva e do sol junto a cinco acácias que nasciam à beira-ria e esqueceu-se do tempo. Do tempo em que pescava para se alimentar e aos filhos.

Já não precisava das redes, das bóias e dos outros apetrechos e com eles se recolheu por baixo das acácias. Guardou o barco para ir a terra quando o mar e a ria não lhe chegassem, o que se foi tornando cada vez mais raro.

De pescador de peixes passou a pescador de sonhos e de destroços que o mar largava na praia, do outro lado da duna.

Com areia e cimento misturou garrafas partidas e inteiras, latas, conchas, estrelas do mar, caixas de madeira, braços e cabeças de bonecas com e sem olhos, baldes de plástico coloridos esquecidos por mãos pequeninas e chorados em casa, pazinhas, pedras, paus, ferros e redes de pesca. Assim foi construindo a sua gruta no meio das acácias e um muro à volta delas pintado de cor-de-rosa nos intervalos das coisas, destacando-se como uma flor colorida na paisagem de areia e sal.

Ganhou fama de excêntrico, eremita, louco.

Todos os anos o muro crescia mais uns palmos, outros braços de outras bonecas, mais moinhos de vento, mais latas embutidas e penduradas que cantavam ao sabor do vento.

Um dia o muro deixou de crescer e começou a abrir rachas e fendas por onde saíam pedaços da sua estrutura de recordações.

O velho Pisco tinha morrido.

A gruta foi-se lentamente abrindo à ria, ao mar e aos outros que, como eu, lhe invadem agora os domínios. O muro já não cor-de-rosa mas branco, rodeando as acácias, solta de vez em quando mais uma cabeça de boneca com ou sem olhos, mais um braço, mais uma concha, mais um balde de plástico, tentando devolver ao mar a memória e os sonhos do Pisco.

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