novembro 29, 2006

Nomes próprios


Pasmo sempre que alguém me telefona e se apresenta do outro lado com um “boa tarde, fala o Arquitecto Xpto da Silva” ou “daqui é a Engenheira Maria Macaca”. Invariavelmente pergunto a mim mesma se o epíteto será nome próprio e, nesse caso, se derivará de uma tradição familiar (como na minha família onde há já várias gerações de irremediáveis Antónios) e se terá dado origem a um diminutivo carinhoso lá em casa, como Tetinho ou Enginha ou assim.
Contenho-me sempre a custo para não fazer esta pergunta, não vá o interlocutor levar a mal ou, quem sabe, ter mesmo a formação académica estampada no bilhete de identidade e não querer intimidades com qualquer um.
Não sei se as normas do Registo Civil permitem a adopção deste tipo de nomes, mas diria que sim, dado o enorme número de pessoas que assim se apresenta. Penso que curioso seria o casamento de dois destes, quando o padre, rabi ou notário, na hora dos votos dissesse: “Doutor, aceita por esposa, Professora, aqui presente, prometendo amá-la e respeitá-la e etecétera e tal ?”.
Convenhamos que tinha graça.
Esta possibilidade confere ainda algumas vantagens aos assim baptizados: os graus académicos, já ninguém lhos tira. Se o menino se chamar Doutor, por exemplo, mesmo que um dia mais tarde decida ser vendedor de castanhas, será sempre Doutor. Fantástico, não? E se calhar ser engenheiro? Ficará Engº Doutor, que ainda é melhor.
Pois é. Eu já dificilmente consigo adoptar para mim própria esta moda, habituada que estou a apresentar-me com o nome que os meus pais me deram. Mas está decidido. Se tiver mais algum filho, hipótese um pouco remota, vai chamar-se Meteorologista.

novembro 11, 2006

Ele chegou já perto do fim do dia, como fazia quase sempre. Gostava da praia àquela hora, com o sol quase a pôr-se mas ainda capaz de aquecer a pele, as famílias a arrumarem os chapéus, as toalhas e as lancheiras, o areal cada vez mais vazio de pessoas, trocadas pelas gaivotas que procuravam algo com que matar a fome. Com frequência era a hora em que começava a soprar um vento quente e em que o mar se tornava mais apetecível. Sentou-se na areia morna, descalçou os sapatos e enterrou os pés. Ficou assim durante algum tempo a olhar as ondas que se repetiam no mar, cinco pequenas duas grandes, é o que dizem, mas nem sempre era assim, já o constatara vezes sem conta, sem perceber muito bem se estava desencontrado do ritmo ou se eram as ondas que se enganavam.

Foi nessa altura que a viu. Vinha descalça, com os cabelos e o vestido de algodão branco a esvoaçarem ao vento. Chamou-lhe a atenção, pois parecia desesperadamente procurar algo que não encontrava. Levantava espreguiçadeiras, espreitava por baixo das canoas e gaivotas de aluguer, perto dos toldos, abria as tampas das papeleiras, inclinava-se junto à beira-mar naquela linha de algas e conchas que a maré deixa quando baixa, remexia com o pé, dava mais uns passos, voltava a olhar em todas as direcções e continuava. Ela aproximou-se mais um pouco. Era bonita e balançava as ancas quando caminhava como se dançasse. Nessa altura, os seus olhares cruzaram-se, ele esboçou um sorriso, ela fez um ar intrigado, aproximou-se mais e falou assim, sem mais introduções:
- faz lá isso outra vez, por favor
- o quê?
- esse sorriso
Ele sorriu de novo e ela fez um ar desapontado:
- é parecido mas não é o que procuro
- e o que procuras?
- procuro um sorriso.
- um sorriso? Dentro das papeleiras, no meio das algas?
- Já vi que não me podes ajudar, disse ela, não percebes nada de sorrisos. Um sorriso encontra-se normalmente onde menos se espera.

Ele reflectiu um pouco e pensou que a afirmação dela não era totalmente desprovida de senso. Resolveu ajudá-la embora não estivesse muito bem a ver como.
- Então conta lá como é esse sorriso. Tenho tempo e nada para fazer. Posso ajudar-te se quiseres.
Ela mirou-o levantando uma sobrancelha, fazendo um ar admirado e torcendo o nariz, o que dava ao seu rosto uma expressão engraçada, de que ele gostou.
- Bom, o sorriso que procuro é o meu. Vim aqui há uns dias, na altura não dei pela falta, mas quando cheguei a casa reparei que já não o tinha comigo. Ainda pensei que tivesse saído sem ele, procurei em todos os armários e gavetas, em todas as malas, na despensa, na casa de banho, até no frigorífico e nada.
Mesmo no espelho, lugar mais óbvio para se perderem sorrisos, eu procurei. Depois lembrei-me que a última vez que o usara tinha sido aqui. Só pode ter ficado cá.
- Está bem, disse ele e levantou-se. – Vamos lá procurar esse sorriso. Tens é de me explicar como é.
- Bom é um sorriso fácil, espontâneo e que encaixa bem na minha boca. Até agora nunca o tinha perdido. Não percebo o que aconteceu…
- Pois eu acho que a forma como o perdeste pouco interessa agora. O importante mesmo é encontrá-lo e pô-lo no sítio de novo.

E assim caminharam os dois pela praia, procurando aqui e ali e conversando pelo caminho. O sol entretanto pusera-se, a praia estava deserta e a lua começava a nascer reflectindo-se na água. O tempo foi passando sem que dessem por isso, trocaram pensamentos e memórias, foram-se aproximando em corpo e em alma e descobrindo aos poucos que há muito que se procuravam. Quando começou a esfriar um pouco, juntaram uns gravetos, pauzinhos, restos de madeira que o mar sempre oferece à praia e fizeram uma fogueira. Sentaram-se juntinhos e conversaram toda a noite, já esquecidos da procura do sorriso dela. Ao amanhecer, quando o sol começou a aquecer e a praia ainda era só deles, despiram-se e entraram no mar. A água estava morna e envolveu-lhes os corpos como um manto. Ele abraçou-a de mansinho, ela aconchegou-se, olharam-se nos olhos e neles viram o seu passado, o seu presente e o seu futuro. Ele beijou-lhe a testa, ela sorriu e disse:
- Vês, eu sabia que tinha perdido o sorriso nesta praia. Já o encontrei.

novembro 04, 2006

Ausência.
O peso da ausência de tudo.
De tanto querer, de tanto esperar, no coração não cabe mais nada, apenas o peso da ausência que ocupa espaço demais.

Uma janela que não se abre, portas fechadas, trancadas, aprisionando sentimentos e vontades.

Sonhos. Interrogações. Sim? Não? Talvez? Como será? Como seria?
Fico aqui? Vou para ali? Aqui o conforto e a segurança do que já sei, ali o desconhecido a sorrir para mim, a acenar-me e a dizer “vem”.

Como será? Como seria?
Grilhetas nos pés, algemas na cabeça. Quero ir mas não vou, fico aqui no meu buraquinho.

Descobrir. Viver outra vez. Ir e voltar. Ir e ficar. Aqui sei os percursos de cor. Posso fazer tudo de olhos fechados. Conheço os caminhos, os cantinhos, os esconderijos onde tiro as máscaras, onde posso ser eu. Sou eu? Alguma vez eu sou eu?

Medo. Medo de acordar, de sentir outra vez. A dor, a alegria, a chuva e o sol.
Medo de me magoar, de magoar.

Vidas bolorentas, sempre iguais. Rotinas. As mesmas palavras, os mesmos gestos, os mesmos olhares. Escovas de dentes juntas no mesmo copo testemunhando intimidades que já foram.

Ausência. Ausência de presente, medo do futuro. Portas trancadas. Janelas fechadas. Nós na garganta.

Quero lá saber. Ponho uma venda nos olhos, algodão nos ouvidos, abro a janela e sinto um raio de sol. Passo para o outro lado sem olhar para trás.

novembro 01, 2006

Vi-te ao longe, aproximei-me devagarinho e, sem que desses por isso, pousei-te no ombro. Inspirei com força e cheirou-me bem. Ao de leve toquei a tua pele e estremeci.

Cheguei-me mais um pouquinho, enfiei-me entre o colarinho da camisa e o pescoço e fiquei assim, quietinha, a avaliar a temperatura do teu corpo, a ouvir a tua voz e o teu riso.

Percebi que eras tu.

Subi para a orelha e entrei pelo ouvido. Percorri canais, veias, artérias, dei cambalhotas em músculos, trepei por ossos e tendões, espreitei para fora e vi o mundo pelos teus olhos, respirei o ar dos teus pulmões, bebi o teu sangue e brinquei na tua boca.

Ao fim do dia já estava cansada, mas sentia-me tão bem que, em vez de me ir embora, resolvi ficar mais um dia e procurar um lugar para dormir. Encontrei o coração e o seu bater compassado massajou-me o corpo e embalou-me. Dormi como um anjo.

Acordei no dia seguinte e vi que o coração estava iluminado. Dei uma volta pelo cérebro, esquivei-me de sinapses, desarrumei pensamentos e memórias, abri e fechei caixinhas escondidas de onde saíam surpresas e promessas de descobertas sem fim. Li alguns dos pensamentos e gostei. Mirei-me nas memórias como num espelho. No fim, tentei arrumar tudo no mesmo lugar, mas não sei se consegui.

Senti-me feliz, percebi que em ti tinha tudo o que precisava e fui ficando.

Desde esse dia que tu és a minha casa. Durmo no teu coração, passeio pelo teu corpo, embriago-me com o teu sangue e descubro mistérios na tua cabeça.

De vez em quando, faço-te cócegas nos dentes e tu sorris sem saberes porquê.