fevereiro 10, 2010

remix em pessoa

Sábado ao fim da tarde, chuva miudinha e Jô Soares a dizer Fernando Pessoa no Teatro Villaret. Sala cheia, bilhetes comprados com uma semana de antecedência para arranjar lugares bem à frente. Dezoito e quarenta, dez minutos atrasados, as luzes apagam-se e Jô Soares, qual poeta fingidor, encarna o menino de sua mãe ao volante do chevrolet pela estrada de Sintra. Delicio-me com as palavras ditas, tão bem ditas, com a tranquilidade e graça de quem conta um conto.

Estava a gostar tanto quando, no prazer imenso de não cumprir um dever, Jô Soares dá por finda a récita numa altura em que cri ser ainda cedo para intervalo. No meu espanto, o relógio marcava dezanove e vinte. Quarenta escassos minutos tinham passado.

A frustração foi superior ao prazer e saí da sala recordando uma frase do próprio Jô num programa qualquer do tempo em que eu via televisão sem ser por acaso e de raspão:

"Estão mexendo no meu bolso..."

fevereiro 08, 2010

uns meses depois

Apetece-me de novo a quietude da casa, passos só os meus, leves de quarto em quarto e o silêncio a escorregar devagar pelos vidros das janelas.

Apetece-me o gato enrolado no colo, dedos distraídos a remexer o pelo, as unhas do cão fazendo tictic no soalho embaraçando o tictac do relógio de parede que não tenho mas que podia perfeitamente ter, sem que isso me perturbasse a quietude da casa nem o silêncio a escorregar preguiçoso pelos vidros das janelas enquanto os meus passos vagueiam de quarto em quarto.

Apetece-me sentar no chão e abrir a gaveta mais baixa do armário onde guardo as fotografias velhas do tempo em que se faziam em papel, tirar de envelopes etiquetados rostos que me sorriem de há 30 anos atrás, eu a sorrir para mim há 20 anos, sem saber então que me olharia agora a procurar prenúncios de rugas nos cantinhos dos olhos e nas comissuras dos lábios.

Apetece-me a quietude da casa para finalmente me encontrar em mim, sem outros passos que não os meus, apenas o tictic das unhas do cão no soalho e o silêncio a escorregar de mansinho pelos vidros das janelas, enquanto o gato se enrola sobre os meus joelhos na esperança de uns dedos distraídos que lhe misturem o pelo antes de adormecer.

E antes de adormecer rever os barcos e o rio que os seduz na mansidão dos dias que correm sem que nada aconteça, ao som do silêncio que de tanto escorregar pelos vidros das janelas os quebra finalmente em mil pedaços de luz na noite que é só minha.